BlogBlogs.Com.Br Os Maias: Parte IV

quinta-feira, 13 de setembro de 2007

Parte IV






VIII


Na manhã seguinte, ás oito horas pontualmente, Carlos parava o break na rua das Flores, diante do conhecido portão da casa do Cruges. Mas o trintanario, que elle mandara acima bater á campainha do terceiro andar, desceu com a estranha nova de que o Sr. Cruges já não morava ali. Onde diabo morava então o sr. Cruges? A criada dissera que o Sr. Cruges vivia agora na rua de S. Francisco, quatro portas adiante do Gremio. Durante um momento, Carlos, desesperado, pensou em partir só para Cintra. Depois lá largou para a rua de S. Francisco, amaldiçoando o maestro, que mudara de casa sem avisar, sempre vago, sempre tenebroso!... E era em tudo assim. Carlos nada sabia do seu passado, do seu interior, das suas affeições, dos seus habitos. O marquez uma noite levara-o ao Ramalhete, dizendo ao ouvido de Carlos que estava alli um genio. Elle encantara logo todo o mundo pela modestia das suas maneiras e a sua arte maravilhosa ao piano: e todo o mundo no Ramalhete começou a tratar Cruges por maestro, a fallar tambem do Cruges como de um genio, a declarar que Choppin nunca fizera obra egual á Meditação de Outono do Cruges. E ninguem sabia mais nada. Fôra pelo Damaso que Carlos conhecera a casa do Cruges e soubera que elle vivia lá com a mãe, uma senhora viuva, ainda fresca, e dona de predios na Baixa.
Ao portão da rua de S. Francisco, Carlos teve de esperar um quarto de hora. Primeiro appareceu furtivamente ao fundo da escada uma criada em cabello, que espreitou o break, os criados de farda, e fugiu pelos degraus acima. Depois veiu um creado em mangas de
camisa trazer a maleta do senhor e um chaile-manta. Emfim, o maestro desceu, a correr, quasi aos trambulhões, com um cache-nez de seda na mão, o guarda-chuva debaixo do braço, abotoando atarantadamente o paletot.
Quando vinha pulando os ultimos degraus, uma voz esganiçada de mulher gritou-lhe de cima:
- Olha não te esqueçam as queijadas!
E Cruges subiu precipitadamente para a almofada, para o lado de Carlos, rosnando que, com a preoccupação de se levantar tão cedo, tivera uma insomnia abominavel...
- Mas que diabo de idéa é essa de mudar de casa, sem avisar a gente, homem? - exclamou Carlos, atirando-lhe para cima dos joelhos um bocado do plaid que o agasalhava, porque o maestro parecia arrepiado.
- É que esta casa tambem é nossa, disse simplesmente Cruges.
- Está claro, ahi está uma razão! murmurou Carlos rindo e encolhendo os hombros.
Partiram.
Era uma manhã muito fresca, toda azul e branca, sem uma nuvem, com um lindo sol que não aquecia, e punha nas ruas, nas fachadas das casas, barras alegres de claridade dourada. Lisboa acordava lentamente: as saloias ainda andavam pelas portas com os
seus ceirões d'hortaliças: varria-se de vagar a testada das lojas: no ar macio morria a distancia um toque fino de missa.
Cruges, tendo acabado de arranjar o cache-nez e de abotoar as luvas, estendeu um olhar á esplendida parelha baia reluzindo como um setim sob o faiscar de prata dos arreios, aos criados com os seus ramos nas librés, a todo aquelle luxo correcto e rolando em cadencia - onde fazia mancha o seu paletot: mas o que o impressionou foi o aspecto resplandecente de Carlos, o olhar acceso, as bellas côres, o bello riso, o quer que fosse de vibrante e de luminoso, que, sob o seu simples veston de xadrezinho castanho, n'aquella almofada burgueza de break, lhe dava um arranque de heroe jovial, lançando o seu carro de guerra... Cruges farejou uma aventura, soltou logo a pergunta que desde a vespera lhe ficara nos labios.
- Com franqueza, aqui para nós, que idéa foi esta de ir a Cintra?
Carlos gracejou. O maestro jurava o segredo pela alma melodiosa de Mozart, e pelas fugas de Bach? Pois bem, a idéa era vir a Cintra, respirar o ar de Cintra, passar o dia em Cintra... Mas, pelo amor de Deus, que o não revelasse a ninguem!
E accrescentou, rindo:
- Deixa-te levar, que não te has de arrepender...
Não, Cruges não se arrependia. Até achava delicioso o passeio, gostara sempre muito de Cintra... Todavia não se lembrava bem, tinha apenas uma vaga idéa de grandes rochas e de nascentes d'aguas vivas... E terminou por confessar que desde os nove annos não voltara a Cintra.
O que! o maestro não conhecia Cintra?... Então era necessario ficarem lá, fazer as peregrinações classicas, subir á Pena, ir beber agua á Fonte dos Amores, barquejar na varzea...
- A mim o que me está a appetecer muito é Sitiaes; e a manteiga fresca.
- Sim, muita manteiga, disse Carlos. E burros, muitos burros... Emfim, uma ecloga!
O break rodava na estrada de Bemfica: iam passando muros enramados de quintas, casarões tristonhos de vidraças quebradas, vendas com o seu masso de cigarros á porta dependurado de uma guita: e a menor arvore, qualquer bocado de relva com papoulas, um
fugitivo longe de collina verde, encantavam Cruges. Ha que tempos elle não via o campo!
Pouco a pouco o sol elevara-se. O maestro desembaraçou-se do seu grande cache-nez. Depois, encalmado, despiu o paletot – e declarou-se morto de fome.
Felizmente estavam chegando á Porcalhota.
O seu vivo desejo seria comer o famoso coelho guisado, - mas, como era cedo para esse acepipe, decidiu-se, depois de pensar muito, por uma bella pratada de ovos com chouriço. Era uma cousa que não provava havia annos, e que lhe daria a sensação de estar na aldêa... Quando o patrão, com um ar importante e como fazendo um favor, pousou sobre a meza sem toalha a enorme travessa com o petisco, Cruges esfregou as mãos, achando aquillo deliciosamente campestre.
- A gente em Lisboa estraga a saude! disse elle, puxando para o prato uma montanha de ovo e chouriço. Tu não tomas nada?...
Carlos, para lhe fazer companhia, acceitou uma chavena de café.
D'ahi a pouco Cruges, que devorava, exclamou com a bocca cheia:
- O Rheno tambem deve ser magnifico!
Carlos olhou-o espantado e rindo. A que vinha agora alli o Rheno?... É que o maestro, desde que sahira as portas, estava cheio de idéas de viagens e de paisagens; queria vêr as grandes montanhas onde ha neve, os rios de que se falla na Historia. O seu ideal seria ir á
Allemanha, percorrer a pé, com uma mochilla, aquella patria sagrada dos seus deuses, de Beethoven, de Mozart, de Wagner...
- Não te appetecia mais ir á Italia? perguntou Carlos accendendo o charuto.
O maestro esboçou um gesto de desdem, teve uma das suas phrases sybillinas:
- Tudo contradanças!...
Carlos então fallou de um certo plano de ir á Italia, com o Ega, no inverno. Ir á Italia, para o Ega, era uma hygiene intellectual: precisava calmar aquella imaginação tumultuosa de nervoso peninsular entre a placida magestade dos marmores...
- O que elle precisava antes de tudo era chicote, rosnou o Cruges.
E voltou a fallar do caso da vespera, do famoso artigo da Gazeta. Achava aquillo, como elle dissera, pura e simplesmente insensato, e de uma sabujice indecorosa. E o que o affligia é que o Ega, com aquelle talento, aquella verve fumegante, não fizesse nada...
- Ninguem faz nada, disse Carlos espreguiçando-se. Tu, por exemplo, que fazes?
Cruges, depois de um siléncio, rosnou encolhendo os hombros:
- Se eu fizesse uma boa opera, quem é que m'a representava?
- E se o Ega fizesse um bello livro, quem é que lh'o lia?
O maestro terminou por dizer:
- Isto é um paiz impossivel... Parece-me que tambem vou tomar café.
Os cavallos tinham descançado, Cruges pagou a conta, partiram. D'ahi a pouco entravam na charneca que lhes pareceu infindavel. D'ambos os lados, a perder de vista, era um chão escuro e triste; e por cima um azul sem fim, que n'aquella solidão parecia triste tambem. O trote compassado dos cavallos batia monotonamente a estrada. Não havia um rumor: por vezes um passaro cortava o ar, n'um vôo brusco, fugindo do ermo agreste. Dentro do break um dos criados dormia; Cruges, pesado dos ovos com chouriço, olhava,
vaga e melancolicamente, as ancas lustrosas dos cavallos.
Carlos, no entanto, pensava no motivo que o trazia a Cintra. E realmente não sabia bem porque vinha: mas havia duas semanas que elle não avistava certa figura que tinha um passo de deusa pisando a terra, e que não encontrava o negro profundo de dois olhos que se
tinham fixado nos seus: agora suppunha que ella estava em Cintra, corria a Cintra. Não esperava nada, não desejava nada. Não sabia se a veria, talvez ella tivesse já partido. Mas vinha: e era já delicioso o pensar n'ella assim por aquella estrada fóra, penetrar, com essa
doçura no coração, sob as bellas arvores de Cintra... Depois, era possivel que d'ahi a pouco, na velha Lawrence, elle a cruzasse de repente no corredor, roçasse talvez o seu vestido, ouvisse talvez a sua voz. Se ella lá estivesse, decerto viria jantar á sala, aquella sala que elle conhecia tão bem, que já lhe estava appetecendo tanto, com as suas pobres cortininhas de cassa, os ramos toscos sobre a meza, e os dois grandes candieiros de latão antigo... Ella entraria alli, com o seu bello ar claro de Diana loira; o bom Damaso, apresentaria o seu amigo Maia; aquelles olhos negros que elle vira passar de longe como duas estrellas, pousariam mais de vagar nos seus; e, muito simplesmente, á ingleza, ella estender-lhe-hia a mão...
- Ora até que finalmente! exclamou Cruges, com um suspiro de allivio e respirando melhor.
Chegavam ás primeiras casas de Cintra, havia já verduras na estrada, e batia-lhes no rosto o primeiro sopro forte e fresco da serra.
E a passo, o break foi penetrando sob as arvores do Ramalhão. Com a paz das grandes sombras, envolvia-os pouco a pouco uma lenta e emballadora sussurração de ramagens, e como o diffuso e vago murmurio de agoas correntes. Os muros estavam cobertos de heras e de musgos: atravez da folhagem, faiscavam longas flechas de sol. Um ar subtil e avelludado circulava, rescendendo ás verduras novas; aqui e além, nos ramos mais sombrios, passaros chilreavam de leve; e n'aquelle simples bocado de estrada, todo salpicado de manchas do sol, sentia-se já, sem se vêr, a religiosa solemnidade dos espessos arvoredos, a frescura distante das nascentes vivas, a tristeza que cae das penedias e o repouso fidalgo das quintas de verão... Cruges respirava largamente, voluptuosamente.
- A Lawrence onde é? Na serra? - perguntou elle com a idéa repentina de ficar alli um mez n'aquelle paraiso.
- Nós não vamos para a Lawrence, disse Carlos sahindo bruscamente do seu silencio, e espertando os cavallos. Vamos para o Nunes, estamos lá muito melhor!
Era uma idéa que lhe viera de repente, apenas passara as primeiras casas de S. Pedro, e o break começara a rolar n'aquellas estradas onde a cada momento elle a poderia encontrar. Tomara-o uma timidez, a que se misturava um laivo de orgulho, o receio melindrado de ser indiscreto, seguindo-a assim a Cintra, ainda que ella o não reconhecesse, indo installar-se sob as mesmas telhas, apoderando-se de um logar á mesma meza... E ao mesmo tempo repugnou-lhe a idéa de lhe ser apresentado pelo Damaso: via-o já, bochechudo e vestido de campo, a esboçar um gesto de ceremonia, a mostrar o seu amigo Maia, a tratal-o por tu, affectando intimidades com ella, cocando-a com um olho terno... Isto seria intoleravel.
- Vamos para o Nunes, que se come melhor!
Cruges não respondeu, mudo, enlevado, recebendo como uma impressão religiosa de todo aquelle esplendor sombrio de arvoredo, dos altos fragosos da serra entrevistos um instante lá em cima nas nuvens, d'esse aroma que elle sorvia deliciosamente, e do sussurro
doce de aguas descendo para os valles...
Só ao avistar o Paço descerrou os labios:
- Sim senhor, tem cachet!
E foi o que mais lhe agradou - este macisso e silencioso palacio, sem florões e sem torres, patriarchalmente assentado entre o casario da villa, com as suas bellas janellas manuelinas que lhe fazem um nobre semblante real, o valle aos pés, frondoso e fresco, e no
alto as duas chaminés collossaes, disformes, resumindo tudo, como se essa residencia fosse toda ella uma cosinha talhada ás proporções de uma gula de Rei que cada dia come todo um Reino...
E apenas o break parou á porta do Nunes, foi-lhe ainda dar um olhar, timido e de longe - receiando alguma palavra rude da sentinella.
Carlos no entanto, saltando logo da almofada, tomou á parte o criado do hotel, que descera a recolher as maletas.
- Vossê conhece o sr. Damaso Salcede? Sabe se elle está em Cintra?
O creado conhecia muito bem o sr. Damaso Salcede. Ainda na vespera pela manhã o vira entrar defronte, no bilhar, com um sujeito de barbas pretas... Devia estar na Lawrence, porque só com raparigas e em pandiga é que o sr. Damaso vinha para o Nunes.
- Então, depressa, dous quartos! exclamou Carlos, com uma alegria de creança, certo agora que ella estava em Cintra. E uma sala particular, só para nós, para almoçarmos!
Cruges, que se approximava, protestou contra esta sala solitaria. Preferia a meza redonda. Ordinariamente na meza redonda encontram-se typos...
- Bem, exclamou Carlos, rindo e esfregando as mãos, põe o almoço na sala de jantar, põe-n'o até na Praça... E muita manteiga fresca para o sr. Cruges!
O cocheiro levou o break, o creado sobraçou as maletas. Cruges, enthusiasmado com Cintra, rompeu pela escada acima, a assobiar - conservando aos hombros o chaile-manta, de que se não queria separar, porque lh'o emprestara a mamã. E apenas chegou á porta da sala de jantar, estacou, ergueu os braços, teve um grito.
- Oh Euzebiosinho!
Carlos correu, olhou... Era elle, o viuvo, acabando de almoçar, com duas raparigas hespanholas.
Estava no topo da meza, como presidindo, diante de uns restos de pudim e de pratos de fructa, amarellado, despenteado, carregado de luto, com a larga fita das lunetas pretas passada por traz da orelha, e uma rodela de taffetá negro sobre o pescoço tapando alguma espinha rebentada.
Uma das hespanholas era um mulherão trigueiro, com sygnaes de bexigas na cara; a outra muito franzina, de olhos meigos, tinha uma roseta de febre, que o pó de arroz não desfarçava. Ambas vestiam de setim preto, e fumavam cigarro. E na luz e na frescura que
entrava pela janella, pareciam mais gastas, mais molles, ainda pegajosas da lentura morna dos colxões, e cheirando a bafio de alcova. Pertencendo á sucia havia um outro sujeito, gordo, baixo, sem pescoço, com as costas para a porta e a cabeça sobre o prato, babujando uma metade de laranja.
Durante um momento, Euzebiosinho ficou interdito, com o garfo no ar; depois lá se ergueu, de guardanapo na mão, veiu apertar os dedos aos amigos, balbuciando logo uma justificação embrulhada, a ordem do medico para mudar de ares, aquelle rapaz que o
acompanhara, e que quizera trazer raparigas... E nunca parecera tão funebre, tão relles, como resmungando estas cousas hypocritas, encolhido á sombra de Carlos.
- Fizeste muito bem, Eusebiosinho, disse Carlos por fim, batendo-lhe no hombro. Lisboa está um horror, e o amor é cousa doce.
O outro continuava a justificar-se. Então a hespanhola magrita, que fumava, afastada da meza e com a perna traçada, elevou a voz, perguntou ao Cruges se elle não lhe fallava. O maestro affirmou-se um momento, e partiu de braços abertos para a sua amiga Lolla. E
foi, n'esse canto da meza, uma grulhada em hespanhol, grandes apertos de mão, e hombre, que no se le ha visto! e mira, que me he accordado de ti! e caramba, que reguapa estas... Depois a Lolla, tomando um arsinho espremido, apresentou o outro mulherão, la señorita Concha...
Vendo isto, impressionado com tanta familiaridade - o sujeito obeso, que apenas levantara um instante a cabeça do prato, decidiu-se a examinar mais attentamente os amigos do Euzebio: crusou o talher, limpou com o guardanapo a bocca, a testa e o pescoço, encavallou laboriosamente no nariz uma grande luneta de vidros grossos, e erguendo a face larga, balofa e côr de cidra, examinou detidamente Cruges, e depois Carlos, com uma impudencia tranquilla.
Eusebiosinho apresentou o seu amigo Palma: e o seu amigo Palma, ouvindo o nome conhecido de Carlos da Maia, quiz logo mostrar diante de um gentleman, que era um gentleman tambem. Arrojou para longe o guardanapo, arredou para fóra a cadeira; e de
pé, estendendo a Carlos os dedos molles e de unhas roidas, exclamou, com um gesto para os restos da sobremeza:
- Se v. ex.ª é servido, é sem ceremonia... Que isto quando a gente vem a Cintra, é para abrir o appetite e fazer bem á barriga...
Carlos agradeceu, e ia retirar-se. Mas Cruges, que se animava e gracejava com a Lolla, fez tambem do outro lado da meza a sua apresentação:
- Carlos, quero que conheças aqui a lindissima Lolla, relações antigas, e a señorita Concha, que eu tive agora o prazer...
Carlos saudou respeitosamente as damas.
O mulherão da Concha rosnou seccamente os buenos dias: parecia de mau humor, pesada do almoço, amodorrada para alli, sem dizer uma palavra, com os cotovellos fincados na meza, os olhos pestanudos meio cerrados, ora fumando, ora palitando os dentes. Mas
a Lolla foi amavel, fez de senhora, ergueu-se, offereceu a Carlos a mãosita suada. Depois retomando o cigarro, dando um geito ás pulseiras de ouro, declarou com um requebro d'olhos, que conhecia de ha muito Carlos...
- No ha estado ustêd con Encarnacion?
Sim, Carlos tivera essa honra... E que era feito d'ella, d'essa bella Encarnacion?
A Lolla sorriu com finura, tocou no cotovello do maestro. Não acreditava que Carlos ignorasse o que era feito da Encarnacion... Emfim, terminou por dizer que a Encarnacion estava agora com o Saldanha.
- Mas olhe que não é com o duque de Saldanha! exclamou Palma, que se conservara de pé, com a bolsa do tabaco aberta sobre a meza, fazendo um grande cigarro.
A Lolita, com um modo secco, replicou que o Saldanha não seria duque, mas era um chico muy decente...
- Olha, disse o Palma lentamente, de cigarro na bocca e tirando a isca da algibeira, duas boas bofetadas na cara lhe dei eu ainda não ha tres semanas... Pergunta ao Gaspar, o Gaspar assistiu... Foi até no Montanha... Duas bofetadas que lhe foi logo o chapéo parar ao meio da rua... O sr. Maia ha de conhecer o Saldanha... Ha de conhecer, que elle tambem tem um carrito e um cavallo.
Carlos fez um gesto indicando que não; e despedia-se de novo, saudando as damas, quando Cruges o chamou ainda, retendo-o mais um instante, em quanto satisfazia uma curiosidade: queria saber qual d'aquellas meninas era a esposa do amigo Eusebio.
Assim interpellado, o viuvo encordoou, rosnou com uma voz morosa, sem erguer as lunetas da laranja que descascava, que estava alli de passeio, não tinha esposa, e ambas aquellas meninas pertenciam ao amigo Palma...
E ainda elle mascava as ultimas palavras, quando Concha, que digeria de perna estendida, se endireitou bruscamente como se fosse saltar, atirou um murro á borda da meza, e com os olhos chammejantes, desafiou o Eusebio a que repetisse aquillo! Queria que elle repetisse! Queria que dissesse se tinha vergonha d'ella, e de dizer que a tinha trazido a Cintra!... E como o Eusebio, já enfiado, tentava gracejar, fazer-lhe uma festa – ella despropositou, atirou-lhe os peiores nomes, dando sempre punhadas na meza, com uma furia que lhe torcia a bocca, lhe punha duas
manchas de sangue no carão trigueiro. A Lolita, vexada, puchava-lhe pelo braço: a outra deu-lhe um repellão; e, mais excitada com a estridencia da propria voz, esvasiou-se de toda a bilis, chamou-lhe porco, accusou-o de forreta, usou-o como um trapo vil.
Palma afflicto, debruçado sobre a meza, exclamava n'um tom ancioso:
- Ó Concha, escuta lá!... Ouve lá!... Concha, eu te explico...
De repente, ella ergueu-se, a cadeira tombou para o lado: e o mulherão abalou pela sala fóra, a grande cauda de setim varreu desabridamente o soalho, ouviu-se dentro estalar uma porta. No chão ficara cahido um pedaço da mantilha de renda.
O creado que entrava do outro lado com a cafeteira estacou, afiando o olho curioso, farejando o escandalo; depois, calado e seccamente, foi servindo em roda o café.
Durante um momento houve um silencio. Apenas porém o criado sahiu - a Lolita e o Palma, agitados mas abafando a voz, atacaram o Eusebiosinho. Elle portara-se muito mal! Aquillo não fôra de cavalheiro! Tinha trazido a rapariga a Cintra, devia-a respeitar, não a ter renegado assim, á bruta, diante de todos...
- Esto no se hace, dizia a Lolita, de pé, gesticulando, com os olhos brilhantes, voltada para Carlos, ha sido una cosa muy fêa!...
E como o Cruges lamentava, sorrindo, ter sido a causa involuntaria da catastrophe - ella baixou a voz, contou que a Concha era uma furia, viera a Cintra com pouca vontade, e desde manhã estava de muy malo humor... Pero lo de Silbeira habia sido una gran pulhice...
Elle, coitado, com a cabeça cahida e as orelhas em braza, remexia desoladamente o seu café; não se lhe viam os olhos escondidos pelas lunetas pretas, mas percebia-se-lhe o grosso soluço que lhe affogava a garganta. Então Palma pouzou a chavena, lambeu os beiços, e de pé no meio da sala, com a face luzidia, o collete desabotoado, fez n'um tom entendido o resumo d'aquelle desgosto.
- Tudo provém d'isto, e desculpe-me você dizel-o, Silveira: é que você não sabe tratar com hespanholas!
A esta cruel palavra o viuvo succumbiu. A colher cahiu-lhe dos dedos. Ergueu-se, acercou-se de Carlos e de Cruges, como refugiando-se n'elles, vindo reconfortar-se ao calor da sua amizade, - e desabafou, estas palavras angustiosas escaparam-se-lhe dos labios:
- Vejam vocês! vem a gente a um sitio d'estes para gosar um bocado de poesia, e no fim é uma d'estas!...
Carlos bateu-lhe melancolicamente no hombro:
- A vida é assim, Eusebiosinho.
Cruges fez-lhe uma festa nas costas:
- Não se póde contar com prazeres, Silveirinha.
Mas Palma, mais pratico, declarou que era forçoso arranjarem-se as cousas. Virem a Cintra, para questões e amuos, isso não! N'aquellas pandegas queria-se harmonia, chalaça, e gosar. Couces, não. Então ficava-se em Lisboa, que era mais barato.
Chegou-se a Lolla, passou-lhe os dedos pela face, com amor:
- Anda Lolita, vae tu lá dentro á Concha, dize-lhe que se não faça tola, que venha tomar café... Anda, que tu sabe-l'a levar... Dize-lhe que peço eu!
Lolita esteve um momento escolhendo duas boas laranjas, foi dar um geito ao cabello diante do espelho, apanhou a cauda - e sahiu, atirando a Carlos, ao passar, um olhar e um sorrisinho.
Apenas ficaram sós, Palma voltou-se para o Eusebio, e deu-lhe conselhos muito serios sobre o systema de tratar hespanholas. Era necessario leval-as por bons modos; por isso é que ellas se pellavam por portuguezes, porque lá em Hespanha era á bordoada... Emfim,
elle não dizia que em certos casos, duas boas bolachas, mesmo um bom par de bengaladas, não fossem uteis... Sabiam, por exemplo, os amigos, quando se devia bater? Quando ellas não gostavam da gente, e se faziam ariscas. Então, sim. Então zás, tapona, que ellas ficavam logo pelo beiço... Mas depois bons modos, delicadeza, tal qual como com francezas...
- Acredite você isto, Silveira. Olhe que eu tenho experiencia. E o sr. Maia que lhe diga se isto não é verdade, elle que tem tambem experiencia e sabe viver com hespanholas!
E isto foi dito com tanto calor, tanto respeito - que Cruges desatou a rir, fez rir Carlos tambem.
O sr. Palma, um pouco chocado, compoz mais as lunetas, e olhou para elles:
- Os senhores riem-se? Imaginam que eu que estou a mangar? Olhem que eu comecei a lidar com hespanholas aos quinze annos! Não, escusam de rir, que n'isso ninguem me ganha! Lá o que se chama ter geito para hespanholas, cá o meco! E, vamos lá, que não é
facil! É necessario ter um certo talento!... Olhem, o Herculano é capaz de fazer bellos artigos e estylo catita... Agora tragam-n'o cá para lidar com hespanholas e veremos! Não dá meia...
Eusebiosinho no entanto fôra duas vezes escutar á porta. Todo o hotel cahira n'um grande silencio, a Lolita não voltava. Então Palma aconselhou um grande passo:
- Vá você lá dentro, Silveira, entre pelo quarto, e assim sem mais nem menos, chegue-se ao pé d'ella...
- E tapona? perguntou Cruges, muito seriamente, gosando o Palma.
- Qual tapona! Ajoelhe e peça perdão... N'este caso é pedir perdão... E como pretexto, Silveira, leve-lhe você mesmo o café.
Eusebiosinho, com um olhar ancioso e mudo, consultou os seus amigos. Mas o seu coração já decidira: e d'ahi a um momento, com o pedaço de mantilha n'uma das mãos, a chavena de café na outra, enfiado e commovido, lá partia a passos lentos pelo corredor a pedir perdão á Concha.
E, logo atraz d'elle, Carlos e Cruges deixaram a sala, sem se despedirem do sr. Palma - que de resto, indifferente tambem, já se accommodara á meza a preparar regaladamente o seu grog.

Eram duas horas quando os dous amigos sahiram emfim do hotel, a fazer esse passeio a Sitiaes - que desde Lisboa tentava tanto o maestro. Na praça, por defronte das lojas vasias e silenciosas, cães vadios dormiam ao sol: atravez das grades da cadêa os presos pediam esmola. Creanças, enxovalhadas e em farrapos, garotavam pelos cantos; e as melhores casas tinham ainda as janellas fechadas, continuando o seu somno de inverno, entre as arvores já verdes. De vez em quando apparecia um bocado da serra, com a sua muralha
de ameias correndo sobre as penedias, ou via-se o castello da Pena, solitario, lá no alto. E por toda a parte o luminoso ar de abril punha a doçura do seu velludo.
Defronte do hotel da Lawrence, Carlos retardou o passo, mostrou-o ao Cruges.
- Tem o ar mais sympathico, disse o maestro. Mas valeu muito a pena ir para o Nunes, só para vêr aquella scena... E então com quê o sr. Carlos da Maia tem experiencia de hespanholas?
Carlos não respondeu, os seus olhos não se despegavam d'aquella fachada banal, onde só uma janella estava aberta com um par de botinas de duraque seccando ao ar. Á porta, dous rapazes inglezes, ambos de knicker-bokers, cachimbavam em silencio; e defronte,
sentados sobre um banco de pedra, dous burriqueiros ao lado dos burros, não lhes tiravam o olho de cima, sorrindo-lhes, cocando-os como uma presa.
Carlos ia seguir, mas pareceu-lhe ouvir, distante e melancolico, sahindo do silencio do hotel, um vago som de flauta; e parou ainda, remexendo as suas recordações, quasi certo de Damaso lhe ter dito que a bordo Castro Gomes tocava flauta...
- Isto é sublime! exclamou do lado o Cruges, commovido.
Parara diante da grade d'onde se domina o valle. E d'ali olhava, enlevadamente, a rica vastidão de arvoredo cerrado, a que só se veem os cimos redondos, vestindo um declive da serra como o musgo veste um muro, e tendo áquella distancia, n'o brilho da luz, a suavidade macia de um grande musgo escuro. E n'esta espessura verde-negra havia uma frontaria de casa que o interessava, branquejando, affogada entre a folhagem, com um ar de nobre repouso, debaixo de sombras seculares... Um momento teve uma idéa de artista: desejou habital-a com uma mulher, um piano e um cão da Terra-nova.
Mas o que o encantava era o ar. Abria os braços, respirava a tragos deliciosos:
- Que ar! Isto dá saude, menino! Isto faz reviver!...
Para o gosar mais docemente, sentou-se adiante, n'um bocado de muro baixo, defronte de um alto terraço gradeado, onde velhas arvores assombreiam bancos de jardim, e estendem sobre a estrada a frescura das suas ramagens, cheias do piar das aves. E como
Carlos lhe mostrava o relogio, as horas que fugiam para ir vêr o palacio, a Pena, as outras bellezas de Cintra - o maestro declarou que preferia estar ali, ouvindo correr a agua, a vêr monumentos caturras...
- Cintra não são pedras velhas, nem cousas gothicas... Cintra é isto, uma pouca de agua, um bocado de musgo... Isto é um paraiso!...
E, n'aquella satisfação que o tornava loquaz, acrescentou, repetindo a sua chalaça:
- E v. ex.ª deve sabel-o, sr. Maia, porque tem experiencia de hespanholas!...
- Poupa-me, respeita a natureza, murmurou Carlos, que riscava pensativamente o chão com a bengala.
Ficaram callados. Cruges agora admirava o jardim, por baixo do muro em que estavam sentados. Era um espesso ninho de verdura, arbustos, flores e arvores, suffocando-se n'uma prodigalidade de bosque silvestre, deixando apenas espaço para um tanquesinho redondo, onde uma pouca de agua, immovel e gelada, com dous ou tres nenufares, se esverdinhava sob a sombra d'aquella ramaria profusa. Aqui e alem, entre a bella desordem da folhagem, distinguiam-se arranjos de gosto burguez, uma volta de ruasita estreita como uma fita, faiscando ao sol, ou a banal palidez de um gesso. N'outros recantos, aquelle jardim de gente rica, exposto ás vistas, tinha retoques pretenciosos de estufa rara, aloes e cactos, braços
aguardasolados de auraucarias erguendo-se d'entre as agulhas negras dos pinheiros bravos, laminas de palmeira, com o seu ar triste de planta exilada, roçando a rama leve e perfumada das olaias floridas de côr de rosa. A espaços, com uma graça discreta, branquejava um grande pé de margaridas; ou em torno de uma rosa, solitaria na sua haste, palpitavam borboletas aos pares.
- Que pena que isto não pertença a um artista! murmurou o maestro. Só um artista saberia amar estas flores, estas arvores, estes rumores...
Carlos sorriu. Os artistas, dizia elle, só amam na natureza os effeitos de linha e côr; para se interessar pelo bem-estar de uma tulipa, para cuidar de que um craveiro não soffra sede, para sentir magoa de que a geada tenha queimado os primeiros rebentões das acacias - para isso só o burguez, o burguez que todas as manhãs desce ao seu quintal com um chapéo velho e um regador, e vê nas arvores e nas plantas uma outra familia muda, por que elle é tambem responsavel...
Cruges, que escutara distrahidamente, exclamou:
- Diabo! É necessario que não me esqueçam as queijadas!
Um som de rodas interrompeu-os, uma caleche descoberta desembocou a trote do lado de Sitiaes. Carlos ergueu-se logo, certo de que era ella, e que elle ia vêr os seus bellos olhos brilhar e fugir como duas estrellas. A caleche passou, levando um ancião de barbas de patriarcha, e uma velha ingleza com o regaço cheio de flores e o véo azul fluctuando ao ar. E logo atraz, quasi no pó que as rodas tinham erguido, appareceu, caminhando pensativamente, de mãos atraz das costas, um homem alto, todo de preto, com um grande
chapéo Panamá sobre os olhos. Foi Cruges que reconheceu os longos bigodes romanticos, que gritou:
- Olha o Alencar! Oh! grande Alencar!...
Durante um momento, o poeta ficou assombrado, com os braços abertos, no meio da estrada. Depois, com a mesma effusão ruidosa, apertou Carlos contra o coração, beijou o Cruges na face - porque conhecia Cruges desde pequeno, Cruges era para elle como um filho. Caramba! Eis ahi uma surpreza que elle não trocava pelo titulo de duque! Ora o alegrão de os vêr ali! Como diabo tinham elles vindo ali parar?
E não esperou a resposta, contou elle logo a sua historia. Tivera um dos seus ataques de garganta, com uma ponta de febre, e o Mello, o bom Mello, recommendara-lhe mudança d'ares. Ora elle, bons ares, só comprehendia os de Cintra: porque alli não eram só os pulmões que lhe respiravam bem, era tambem o coração, rapazes!... De sorte que viera na vespera, no omnibus.
- E onde estás tu, Alencar? perguntou logo Carlos.
- Pois onde queres tu que eu esteja, filho? Lá estou com a minha velha Lawrence. Coitada! está bem velha! mas para mim é sempre uma amiga, é quasi uma irmã!... E vocês, que diabo? Para onde vão vocês com essas flores nas lapellas?
- A Sitiaes... Vou mostrar Sitiaes ao maestro.
Então tambem elle voltava a Sitiaes! Não tinha nada que fazer senão sorver bom ar, e scismar... Toda a manhã andara alli, vagamente, pendurando sonhos dos ramos das arvores. Mas agora já os não largava; era mesmo um dever ir elle proprio fazer ao maestro as honras de Sitiaes...
- Que aquillo é sitio muito meu, filhos! Não ha alli arvore que me não conheça... Eu não vos quero começar já a impingir versos; mas emfim, vocês lembram-se de uma cousa que eu fiz a Sitiaes, e de que por ahi se gostou...

Quantos luares eu lá vi!
Que doces manhãs d'abril!
E os ais que soltei alli
Não foram sete, mas mil!

Pois então já vocês vêem, rapazes, que tenho razão para conhecer Sitiaes...
O poeta lançou ao ar um vago suspiro, e durante um instante caminharam todos tres callados.
- Dize-me uma cousa, Alencar, perguntou Carlos baixo, parando, e tocando no braço do poeta. O Damaso está na Lawrence?
Não, que elle o tivesse visto. Verdade seja que na vespera, apenas chegara, fôra-se deitar, fatigado; e n'essa manhã almoçara só com dois rapazes inglezes. O unico animal que avistara fôra um lindo cãosinho de luxo, ladrando no corredor...
- E vocês onde estão?
- No Nunes.
Então o poeta parando de novo, contemplando Carlos com sympathia:
- Que bem que fizeste em arrastar cá o maestro, filho!... Quantas vezes eu tenho dito áquelle diabo, que se mettesse no omnibus, viesse passar dous dias a Cintra. Mas ninguem o tira de martelar o piano. E olha tu que mesmo para a musica, para compor, para entender um Mozart, um Choppin, é necessario ter visto isto, escutado este rumor, esta melodia da ramagem...
Baixou a voz, apontando para o maestro, que caminhava adiante, enlevado:
- Tem muito talento, tem muita idéa melodica!... Olha que andei com aquillo ás cabritas... E a mãe, menino, foi muitissimo boa mulher.
- Vejam vocês isto! gritou Cruges que parara, esperando-os. Isto é sublime.
Era apenas um bocadito d'estrada, apertada entre dous velhos muros cobertos d'hera, assombreada por grandes arvores entrelaçadas, que lhe faziam
um toldo de folhagem aberto á luz como uma renda: no chão tremiam manchas de sol: e, na frescura e no silencio, uma agoa que se não via ia fugindo e cantando.
- Se tu queres sublime, Cruges, exclamou Alencar, então tens de subir á serra. Ahi tens o espaço, tens a nuvem, tens a arte...
- Não sei, talvez goste mais d'isto, murmurou o maestro.
A sua natureza de timido preferiria, de certo, estes humildes recantos, feitos de uma pouca de folhagem fresca e de um pedaço de muro musgoso, logares de quietação e de sombra, onde se aninha com um conforto maior o scismar dos indolentes...
- De resto, filho, continuou Alencar, tudo em Cintra é divino. Não ha cantinho que não seja um poema... Olha, alli tens tu, por exemplo, aquella linda florinha azul... - e, ternamente, apanhou-a.
- Vamos andando, vamos andando, murmurou Carlos impaciente, e agora, desde que o poeta fallara do cãosinho de luxo, mais certo de que ella estava na Lawrence, e que a ía brevemente encontrar.
Mas, ao chegar a Sitiaes, Cruges teve uma desillusão diante d'aquelle vasto terreiro coberto de herva, com o palacete ao fundo, enxovalhado, de vidraças partidas, e erguendo pomposamente sobre o arco, em pleno ceu, o seu grande escudo de armas. Ficara-lhe a
idéa, de pequeno, que Sitiaes era um montão pittoresco de rochedos, dominando a profundidade de um valle; e a isto misturava-se vagamente uma recordação de luar e de guitarras... Mas aquillo que elle alli via era um desapontamento.
- A vida é feita de desapontamentos, disse Carlos. Anda para diante!
E apressou o passo atravez do terreiro, em quanto o maestro, cada vez mais animado, lhe gritava a chalaça do dia:
- E v. ex.ª deve sabel-o, sr. Maia, porque tem experiencia de hespanholas!...
Alencar, que se demorara atraz a accender o cigarro, estendeu o ouvido, curioso, quiz saber o que era isso de hespanholas? O maestro contou-lhe o encontro no Nunes e os furores da Concha.
Iam ambos caminhando por uma das alamedas lateraes, verde e fresca, de uma paz religiosa, como um claustro feito de folhagem. O terreiro estava deserto; a herva que o cobria, crescia ao abandono, toda estrellada de botões de ouro brilhando ao sol, e de
malmequersinhos brancos. Nenhuma folha se movia: atravez da ramaria ligeira o sol atirava mólhos de raios de ouro. O azul parecia recuado a uma distancia infinita, repassado de silencio luminoso; e só se ouvia, ás vezes, monotona e dormente, a voz de um cuco nos
castanheiros.
Toda aquella vivenda, com a sua grade enferrujada sobre a estrada, os seus florões de pedra roídos da chuva, o pesado brazão rococó, as janellas cheias de teias de aranha, as telhas todas quebradas, parecia estar-se deixando morrer voluntariamente n'aquella verde solidão, - amuada com a vida, desde que d'alli tinham desapparecido as ultimas graças do tricorne e do espadim, e os derradeiros vestidos de anquinhas tinham roçado essas relvas... Agora Cruges ía descrevendo ao Alencar a figura do Eusebiosinho, com a chavena de café na mão, a ir pedir perdão á Concha; e a cada momento o poeta, com o seu grande chapéo panamá, se agachava a colher florinhas silvestres.
Quando passaram o Arco, encontraram Carlos sentado n'um dos bancos de pedra, fumando pensativamente a sua cigarette. O palacete deitava sobre aquelle bocado de terraço a sombra dos seus muros tristes; do valle subia uma frescura e um grande ar; e algures, em baixo, sentia-se o prantear de um repuxo. Então o poeta, sentando-se ao lado do seu amigo, fallou com nojo do Eusebiosinho. - Ahi está uma torpeza que elle nunca commettera, trazer meretrizes a Cintra! Nem a Cintra, nem a parte nenhuma... Mas muito menos a Cintra! Sempre tivera, todo o mundo devia ter, a religião d'aquellas arvores e o amor d'aquellas sombras...
- E esse Palma, accrescentou elle, é um traste! Eu conheço-o; elle teve uma especie de jornal, e já lhe dei muita bofetada na rua do
Alecrim. Foi uma historia curiosa... Ora eu t'a conto, Carlos... Aquelle canalha! quando me lembro!... Aquella vil bolinha de materia
putrida!... Aquelle chouricinho de pus!
Levantou-se, passando a mão nervosa sobre os bigodes, já excitado pela lembrança d'aquella velha desordem, vergastando o
Palma com nomes ferozes, todo n'uma d'essas fervuras de sangue que eram a sua desgraça.
Cruges, no entanto, encostado ao parapeito, olhava a grande planicie de lavoura que se estendia em baixo, rica e bem trabalhada, repartida em quadrados verde-claros e verde-escuros, que lhe faziam lembrar um panno feito de remendos assim que elle tinha na meza
do seu quarto. Tiras brancas de estradas serpeavam pelo meio: aqui e além, n'uma massa de arvoredo, branquejava um casal: e a cada passo, n'aquelle solo onde as aguas abundam, uma fila de pequenos olmos revelava algum fresco ribeiro, correndo e reluzindo entre as
hervas. O mar ficava ao fundo, n'uma linha unida, esbatida na tenuidade diffusa da bruma azulada: e por cima arredondava-se um grande azul lustroso como um bello esmalte, tendo apenas, lá no alto, um farraposinho de nevoa, que ficara alli esquecido, e que dormia
enovellado e suspenso na luz...
- Tive nojo! exclamava o Alencar, rematando fogosamente a sua historia. Palavra que tive nojo! Atirei-lhe a bengala aos pés, crusei os braços e disse-lhe: ahi tem você a bengala, seu covarde, a mim bastam-me as mãos!
- Que diabo, não me hão de esquecer as queijadas! murmurou Cruges, para si mesmo, affastando-se do parapeito.
Carlos erguera-se tambem, olhava o relogio. Mas antes de deixar Sitiaes, Cruges quiz explorar o outro terraço ao lado: e, apenas subira os dous velhos degraus de pedra, soltou de lá um grito alegre:
- Bem dizia eu! cá estão elles... E vocês a dizer que não!
Foram-n'o encontrar triumphante, diante de um montão de penedos, polidos pelo uso, já com um vago feitio de assentos, deixados ali outr'ora, poeticamente, para dar ao terraço uma graça agreste de selva brava. Então, não dizia elle? Bem dizia elle que em Sitiaes havia penedos!
- Se eu me lembrava perfeitamente! Penedo da Saudade, não é que se chama, Alencar?
Mas o poeta não respondeu. Diante d'aquellas pedras crusara os braços, sorria dolorosamente; e immovel, sombrio no seu fato negro, com o panamá carregado para a testa, envolveu todo aquelle recanto n'um olhar lento e triste.
Depois, no silencio, a sua voz ergueu-se, saudosa e dolente:
- Vocês lembram-se, rapazes, nas Flôres e Martyrios, de uma das cousas melhores que lá tenho, em rimas livres, chamada 6 de Agosto? Não se lembram talvez... Pois eu vol-a digo, rapazes!
Machinalmente tirara do bolso o lenço branco. E com elle fluctuante na mão, puxando Carlos para junto de si, chamando do outro lado o Cruges, baixou a voz como n'uma confidencia sagrada, recitou, com um ardor surdo, mordendo as syllabas, tremulo, n'uma
paixão ephemera de nervoso:

Vieste! Cingi-te ao peito.
Em redor que noite escura!
Não tinha rendas o leito,
Nem tinha lavores na barra
Que era só a rocha dura...
Muito ao longe uma guitarra
Gemia vagos harpejos...
(Vê tu que não me esqueceu)...
E a rocha dura aqueceu
Ao calor dos nossos beijos!

Esteve um momento embebendo o olhar nas pedras brancas batidas do sol, atirou para lá um gesto triste, e murmurou:
- Foi alli.
E affastou-se, alquebrado sob o seu grande chapéo panamá, com o lenço branco na mão. Cruges, que aquelles romantismos impressionavam, ficou a olhar para os penedos como para um sitio historico. Carlos sorria. E quando ambos deixaram esse recanto do
terraço - o poeta, agachado junto do arco, estava apertando o atilho da ceroula.
Endireitou-se logo, já toda a emoção o deixara, mostrava os maus dentes n'um sorriso amigo, e exclamou, apontando para o arco:
- Agora, Cruges, filho, repara tu n'aquella tela sublime.
O maestro embasbacou. No vão do arco, como dentro de uma pesada moldura de pedra, brilhava, á luz rica da tarde, um quadro maravilhoso, de uma composição quasi phantastica, como a illustração de uma bella lenda de cavallaria e de amor. Era no primeiro plano o terreiro, deserto e verdejando, todo salpicado de botões amarellos; ao fundo, o renque cerrado de antigas arvores, com hera nos troncos, fazendo ao longo da grade uma muralha de folhagem reluzente; e emergindo abruptamente d'essa copada linha de bosque assoalhado, subia no pleno resplendor do dia, destacando vigorosamente n'um relevo nitido sobre o fundo de céu azul claro, o cume airoso da serra, toda côr de violeta escura, coroada pelo castello da Pena, romantico e solitario no alto, com o seu parque sombrio aos pés, a torre esbelta perdida no ar, e as cupulas brilhando ao sol como se fossem feitas de ouro...
Cruges achou aquelle quadro digno de Gustavo Doré. Alencar teve uma bella phrase sobre a imaginação dos arabes. Carlos, impaciente, foi-os apressando para diante.
Mas agora Cruges, impressionado, estava com desejo de subir á Pena. Alencar, por si, ía tambem com prazer. A Pena para elle era outro ninho de recordações. Ninho? Devia antes dizer cemiterio... Carlos hesitava, parado junto da grade. Estaria ella na Pena? E
olhava a estrada, olhava as arvores, como se podesse adivinhar pelas pegadas no pó, ou pelo mover das folhas, que direcção tinham tomado os passos que elle seguia... Por fim teve uma idéa.
- Vamos indo primeiro á Lawrence. E depois se quizermos ir á Pena, arranjam-se lá os burros...
E nem mesmo quiz escutar o Alencar, que tivera tambem uma idéa, fallava de Collares, de uma visita ao seu velho Carvalhosa; accelerou o passo para a Lawrence, emquanto o poeta tornava a arranjar o atilho da ceroula, e o maestro, n'um enthusiasmo bucolico, ornava o chapéo de folhas de hera.
Defronte da Lawrence, os dois burriqueiros, de cigarro na bocca, não tendo podido apoderar-se dos inglezes, preguiçavam ao sol.
- Vocês sabem, perguntou-lhes Carlos, se uma familia, que está aqui no hotel, foi para a Pena?...
Um dos homens pareceu adivinhar, exclamou logo, desbarretando-se.
- Sim, senhor, foram para lá ha bocado, e aqui está o burrinho tambem para v. ex.ª, meu amo!
Mas o outro, mais honesto, negou. Não senhor, a gente que fôra para a Pena estava no Nunes...
- A familia que o senhor diz foi agora ali para baixo, para o palacio...
- Uma senhora alta?
- Sim senhor.
- Com um sujeito de barba preta?
- Sim senhor.
- E uma cadellinha?
- Sim senhor.
- Tu conheces o sr. Damaso Salcede?
- Não senhor... É o que tira retratos?
- Não, não tira retratos... Tomae lá.
Deu-lhes uma placa de cinco tostões; e voltou ao encontro dos outros, declarando que realmente era tarde para subirem á Pena.
- Agora o que tu deves vêr, Cruges, é o palacio. Isso é que tem originalidade e cachet! Não é verdade, Alencar?...
- Eu vos digo, filhos, começou o auctor de Elvira, historicamente fallando...
- E eu tenho de comprar as queijadas, murmurou Cruges.
- Justamente! exclamou Carlos. Tens ainda as queijadas; é necessario não perder tempo; a caminho!
Deixou os outros ainda indecisos, abalou para o palacio, em quatro largas passadas estava lá. E logo da praça avistou, saindo já o portão, passando rente da sentinella, a famosa familia hospedada na Lawrence e a sua cadellinha de luxo. Era, com effeito, um sujeito de barba preta, e de sapatos de lona branca; e, ao lado d'elle, uma matrona enorme, com um mantelete de seda, cousas de ouro pelo pescoço e pelo peito, e o cãosinho felpudo ao collo. Vinham ambos rosnando o quer que fosse, com mau modo um para o outro, e em hespanhol.
Carlos ficou a olhar para aquelle par com a melancolia de quem contempla os pedaços d'um bello marmore quebrado. Não esperou mais pelos outros, nem os quiz encontrar. Correu á Lawrence por um caminho differente, avido de uma certeza: - e ahi, o criado que lhe appareceu, disse-lhe que o sr. Salcede e os srs. Castro Gomes tinham partido na vespera para Mafra...
- E de lá?...
O criado ouvira dizer ao sr. Damaso que de lá voltavam a Lisboa.
- Bem, disse Carlos atirando o chapéo para cima da meza, traga-me você um calice de cognac, e uma pouca d'agua fresca.
Cintra, de repente, pareceu-lhe intoleravelmente deserta e triste. Não teve animo de voltar ao palacio, nem quis sahir mais d'ali; e arrancando as luvas, passeiando em volta da meza de jantar, onde murchavam os ramos da vespera, sentia um desejo desesperado de
galopar para Lisboa, correr ao Hotel Central, invadir-lhe o quarto, vêl-a, saciar os seus olhos n'ella!... Porque, o que o irritava agora era não poder encontrar, na pequenez de Lisboa, onde toda a gente se acotovella, aquella mulher que elle procurava anciosamente! Duas semanas farejara o Aterro como um cão perdido: fizera perigrinações ridiculas de theatro em theatro: n'uma manhã de domingo percorrera as missas! E não a tornara a vêr. Agora sabia-a em Cintra, voava a Cintra, e não a via tambem. Ella cruzava-o uma tarde, bella como uma deusa transviada no Aterro, deixava-lhe cahir n'alma por accaso um dos seus olhares negros, e desapparecia, evaporava-se, como se tivesse realmente remontado ao céo, d'ora em diante invisivel e sobrenatural: e elle ali ficava, com aquelle olhar no coração, perturbando todo o seu ser, orientando surdamente os seus pensamentos, desejos, curiosidades, toda a sua vida interior, para uma adoravel desconhecida, de quem elle nada sabia senão que era alta e loira, e que tinha uma cadellinha escosseza... Assim acontece com as estrellas d'acaso! Ellas não são d'uma essencia differente, nem contéem mais luz que as outras: mas, por isso mesmo que passam fugitivamente e se esvaem, parecem despedir um fulgor mais divino, e o deslumbramento que deixam nos olhos é mais perturbador e mais longo... Elle não a tornara a vêr. Outros viam-n'a. O Taveira vira-a. No Gremio, ouvira um alferes de lanceiros fallar d'ella, perguntar quem era, porque a encontrava todos os dias. O alferes encontrava-a todos os dias. Elle não a via, e não socegava...
O criado trouxe o cognac. Então Carlos, preparando vagarosamente o seu refresco, conversou com elle, fallou um momento dos dois rapazes inglezes, depois da hespanhola obesa... Emfim, dominando uma timidez, quasi córando, fez, atravez de grandes silencios,
perguntas sobre os Castro Gomes. E cada resposta lhe parecia uma acquisição preciosa. A senhora era muito madrugadora, dizia o criado: ás sete horas tinha tomado banho, estava vestida, e sahia só. O sr. Castro Gomes, que dormia n'um quarto separado, nunca se mexia antes do meio dia; e, á noite, ficava uma eternidade á meza, fumando cigarettes e molhando os beiços em copinhos de cognac e agua. Elle e o sr. Damaso jogavam o dominó. A senhora tinha montões de flôres no quarto; e tencionavam ficar até domingo, mas fôra ella que apressára a partida...
- Ah, disse Carlos depois de um silencio, foi a senhora que apressou a partida?...
- Sim, senhor, com cuidado na menina que tinha ficado em Lisboa... V. ex.ª toma mais cognac?
Com um gesto Carlos recusou, e veiu sentar-se no terraço. A tarde descia, calma, radiosa, sem um estremecer de folhagem, cheia de claridade dourada, n'uma larga serenidade que penetrava a alma. Elle tel-a-hia pois encontrado, ali mesmo n'aquelle terraço, vendo tambem cahir a tarde - se ella não estivesse impaciente por tornar a vêr a filha, algum bébésinho loiro que ficára só com a ama. Assim, a brilhante deusa era tambem uma boa mamã; e isto dava-lhe um encanto mais profundo, era assim que elle gostava mais d'ella, com este terno estremecimento humano nas suas bellas fórmas de marmore.
Agora, já ella estava em Lisboa; e imaginava-a nas rendas do seu peignoir, com o cabello enrolado á pressa, grande e branca, erguendo ao ar o bébé nos seus explendidos braços de Juno, e fallando-lhe com um riso d'ouro. Achava-a assim adoravel, todo o seu
coração fugia para ella... Ah! poder ter o direito de estar junto d'ella, n'essas horas d'intimidade, bem junto, sentindo o aroma da sua pelle, e sorrindo tambem a um bébé. E, pouco a pouco, foi-lhe surgindo na alma um romance, radiante e absurdo: um sopro de paixão, mais forte que as leis humanas, enrolava violentamente, levava juntos o seu destino e o d'ella; depois, que divina existencia, escondida n'um ninho de flôres e de sol, longe, n'algum canto da Italia...
E, toda a sorte de idéas d'amor, de devoção absoluta, de sacrificio, invadiam-n'o deliciosamente - emquanto os seus olhos se esqueciam, se perdiam, enlevados na religiosa solemnidade d'aquelle bello fim da tarde. Do lado do mar subia uma maravilhosa côr d'ouro pallido, que ia no alto diluir o azul, dava-lhe um branco indeciso e opalino, um tom de desmaio doce; e o arvoredo cobria-se todo de uma tinta loura, delicada e dormente. Todos os rumores tomavam uma suavidade de suspiro perdido. Nenhum contorno se movia como na immobilidade de um extase. E as casas, voltadas para o poente, com uma ou outra janella accesa em braza, os cimos redondos das arvores apinhadas, descendo a serra n'uma espessa debandada para o valle, tudo parecera ficar de repente parado n'um recolhimento melancolico e grave, olhando a partida do sol, que mergulhava lentamente no mar...
- Oh Carlos, tu estás ahi?
Era em baixo, na estrada, a voz grossa do Alencar gritando por elle. Carlos appareceu á varanda do terraço.
- Que diabo estás tu ahi a fazer, rapaz? exclamou Alencar, agitando alegremente o seu panamá. Nós lá estivemos á espera, no covil
real... Fomos ao Nunes... Iamos agora procurar-te á cadeia!
E o poeta riu largamente da sua pilheria - emquanto Cruges, ao lado, de mãos atraz das costas, e a face erguida para o terraço, bocejava desconsoladamente.
- Vim refrescar, como tu dizes, tomar um pouco de cognac, que estava com sêde.
Cognac? eis ahi o mimo por que o pobre Alencar estivera anciando toda a tarde, desde Sitiaes. E galgou logo as escadas do terraço - depois de ter gritado para dentro, para a sua velha Lawrence, que lhe mandasse acima meia da fina.
- Viste o Paço, hein, Cruges? perguntou Carlos ao maestro, quando elle appareceu, arrastando os passos. Então, parece-me que o que nos resta a fazer é jantar, e abalar...
Cruges concordou. Voltava do palacio com um ar murcho, fatigado d'aquelle vasto casarão historico, da voz monotona do cicerone mostrando a cama de S. M. El-Rei, as cortinas do quarto de S. M. a Rainha, «melhores que as de Mafra,» o tira-botas de S. A.; e
trazia de lá uma pouca d'essa melancolia que erra, como uma atmosphera propria, nas residencias reaes.
E aquella natureza de Cintra, ao escurecer, dizia elle, começava a entristecel-o.
Então concordaram em jantar ali, na Lawrence, para evitar o espectaculo torpe do Palma e das damas, mandar vir á porta o break, e partir depois ao nascer do luar. Alencar, aproveitando a carruagem, recolhia tambem a Lisboa.
- E, para ser festa completa, exclamou elle, limpando os bigodes do cognac, enquanto vocês vão ao Nunes pagar a conta, e dar ordens para o break, eu vou-me entender la abaixo á cosinha com a velha Lawrence, e preparar-vos um bacalhau á Alencar, recipe meu... E vocês verão o que é um bacalhau! Porque, lá isso, rapazes, versos os farão outros melhor; bacalhau, não!
Atravessando a praça, Cruges pedia a Deus que não encontrassem mais o Eusebiosinho. Mas, apenas pozeram os pés nos primeiros degraus do Nunes, ouviram em cima o chalrar da sucia. Estavam na ante-sala, já todos reconciliados, a Concha contente – e installados aos dois cantos d'uma meza, com cartas. O Palma, munido d'uma garrafa de genebra, fazia uma batotinha para o Eusebio; e as duas hespanholas, de cigarro na bocca, jogavam languidamente a bisca.
O viuvo, enfiado, perdia. No monte, que começára miseravelmente com duas corôas, já luzia ouro; e Palma triumphava, chalaceiando, dando beijocas na sua moça. Mas, ao mesmo tempo, fazia de cavalheiro, fallava de dar a desforra, ficar ali, sendo necessario, até de madrugada.
- Então vv. exas. não se tentam? Isto é para passar o tempo... Em Cintra tudo serve... Valete! Perdeu você outro mico no rei. Deve a libra mais quinze tostões, sô Silveira!
Carlos passára, sem responder, seguido pelo criado - no momento em que Euzebiosinho, furioso, já desconfiado, quiz verificar, com as lunetas negras sobre o baralho, se lá estavam todos os reis.
Palma alastrou as cartas largamente, sem se zangar. Entre amigos, que diabo, tudo se admittia! A sua hespanhola, essa sim, escandalisou-se, defendendo a honra do seu homem: então Palmita havia de ter empalmado o rei? Mas, a Concha, zelava o dinheiro do seu viuvo, exclamava que o rei podia estar perdido... Os reis estavam lá.
Palma atirou um calice de genebra ás goelas, e recomeçou a baralhar magestosamente.
- Então v. ex.ª não se tenta? repetia elle para o maestro.
Cruges, com effeito, parára, roçando-se pela meza, com o olho nas cartas e no ouro do monte, já sem força, remexendo o dinheiro nas algibeiras. Subitamente um az decidiu-o. Com a mão nervosa, escorregou-lhe uma libra por baixo, jogando cinco tostões, e de porta. Perdeu logo. Quando Carlos voltou do quarto com o criado que descia as malas, o maestro estava em pleno vicio, com a libra entalada, os olhos accezos, o ar esguedelhado.
- Então tu?... exclamou Carlos com severidade.
- Já desço, rosnou o maestro.
E, á pressa, foi á paz da libra, n'um terno contra o rei. Cartada de colicas! como disse o Palma: e foi com emoção que elle começou a puxar as cartas, espremendo-as uma a uma, n'um vagar mortal. A apparição de um bico arrancou-lhe uma praga. Era apenas um duque, Eusebiosinho perdia mais uma placa. Palma teve um suspirinho de alivio; e, escondendo com ambas as mãos o baralho, erguendo as lunetas faiscantes para o maestro:
- Então, sempre continúa toda a libra?...
- Toda.
Palma teve outro suspiro, d'anciedade; e, mais pallido, voltou bruscamente as cartas.
- Rei! gritou elle, empolgando o ouro.
Era o rei de paus, a sua hespanhola bateu as palmas, o maestro abalou furioso.
Na Lawrence o jantar prolongou-se até ás oito horas, com luzes; - e o Alencar fallou sempre. Tinha esquecido n'esse dia as desillusões da vida, todos os rancores litterarios, estava n'uma veia excellente; e foram historias dos velhos tempos de Cintra, recordações da sua famosa ida a Paris, cousas picantes de mulheres, bocados da chronica intima da Regeneração... Tudo isto com estridencias de voz, e filhos isto! e rapazes aquillo! e gestos que faziam oscillar as chamas das vellas, e grandes copos de Collares emborcados de um trago. Do outro lado da meza, os dois inglezes, correctos nos seus fraques negros, de cravos brancos na botoeira, pasmavam, com um ar embaraçado a que se misturava desdem, para esta desordenada exhuberancia de meridional.
A apparição do bacalhau foi um triumpho: - e a satisfação do poeta tão grande, que desejou mesmo, caramba, rapazes, que ali estivesse o Ega!
- Sempre queria que elle provasse este bacalhau! Já que me não aprecia os versos, havia de me apreciar o cozinhado, que isto é um bacalhau de artista em toda a parte!... N'outro dia fil-o lá em casa dos meus Cohens; e a Rachel, coitadinha, veiu para mim e abraçou-me... Isto, filhos, a poesia e a cozinha são irmãs! Vejam vocês Alexandre Dumas... Dirão vocês que o pae Dumas não é um poeta... E então d'Artagnan? D'Artagnan é um poema... É a faisca, é a phantasia, é a inspiração, é o sonho, é o arrobo! Então, pôço, já vêem vocês, que é poeta!... Pois vocês hão-de vir um dia d'estes jantar commigo, e ha-de vir o Ega, e hei-de-vos arranjar umas perdizes á hespanhola, que vos hão-de nascer castanholas nos dedos!... Eu, palavra, gosto do Ega! Lá essas cousas de realismo e romantismo, historias... Um lyrio é tão natural como um persevejo... Uns preferem fedôr de sargeta; perfeitamente, destape-se o cano publico... Eu prefiro pós de marechala n'um seio branco; a mim o seio, e, lá vae á vossa. O que se quer, é coração. E o Ega tem-n'o. E tem faisca, tem rasgo, tem estylo... Pois, assim é que elles se querem, e, lá vae á saude do Ega!
Pousou o copo, passou a mão pelos bigodes, e rosnou mais baixo:
- E, se aquelles inglezes continuam a embasbacar para mim, vae-lhes um copo na cara, e é aqui um vendaval, que ha-de a Gran-Bretanha ficar sabendo o que é um poeta portuguez!...
Mas não houve vendaval, a Gran-Bretanha ficou sem saber o que é um poeta portuguez, e o jantar terminou n'um café tranquillo. Eram nove horas, fazia luar, quando Carlos subiu para a almofada do break.
Alencar, embuçado num capote, um verdadeiro capote de padre de aldêa, levava na mão um ramo de rosas: e agora, guardara o seu panamá na maleta, trazia um bonet de lontra. O maestro, pesado do jantar, com um começo de spleen, encolheu-se a um canto do break, mudo, enterrado na gola do paletot, com a manta da mamã sobre os joelhos. Partiram. Cintra ficava dormindo ao luar.
Algum tempo o break rodou em silencio, na belleza da noite. A espaços, a estrada apparecia banhada d'uma claridade quente que faiscava. Fachadas de casas, caladas e pallidas, surgiam, d'entre as arvores com um ar de melancolia romantica. Murmurios de agoas perdiam-se na sombra; e, junto dos muros enramados, o ar estava cheio d'aroma. Alencar accendera o cachimbo, e olhava a lua.
Mas, quando passaram as casas de S. Pedro, e entraram na estrada, silenciosa e triste, Cruges mexeu-se, tossiu, olhou tambem para a lua, e murmurou d'entre os seus agasalhos:
- Oh Alencar, recita para ahi alguma cousa...
O poeta condescendeu logo - apesar de um dos criados ir ali ao lado d'elles, dentro do break. Mas, que havia elle de recitar, sob o encanto da noite clara? Todo o verso parece frouxo, escutado diante da lua! Emfim, ía dizer-lhe uma historia bem verdadeira e bem triste... Veiu sentar-se ao pé do Cruges, dentro do seu grande capotão, esvaziou os restos do cachimbo, e, depois de acariciar algum tempo os bigodes, começou, n'um tom familiar e simples:

Era o jardim d'uma vivenda antiga,
Sem arrebiques d'arte ou flôres de luxo;
Ruas singellas d'alfazema e buxo,
Cravos, roseiras...

- Com mil raios! exclamou de repente o Cruges, saltando de dentro da manta, com um berro que emmudeceu o poeta, fez voltar Carlos na almofada, assustou o trintanario.
O break parára, todos o olhavam suspensos; e, no vasto silencio da charneca, sob a paz do luar, Cruges, succumbido, exclamou:
- Esqueceram-me as queijadas!




IX


O dia famoso da soirée dos Cohens, ao fim d'essa semana tão luminosa e tão doce, amanheceu enevoado e triste. Carlos, abrindo cedo a janella sobre o jardim, vira um céu baixo que pesava como se fosse feito de algodão em rama enxovalhado: o arvoredo tinha um tom arripiado e humido; ao longe o rio estava turvo, e no ar molle errava um halito morno de sudoeste. Decidira não sahir - e desde as nove horas, sentado á banca, embrulhado no seu vasto robe-de-chambre de velludo azul, que lhe dava o bello ar de um principe artista da Renascença, tentava trabalhar: mas, apesar de duas chavenas de café, de cigarettes sem fim, o cerebro, como o céu fóra, conservava-se-lhe n'essa manhã afogado em nevoas. Tinha d'estes dias terriveis; julgava-se então «uma besta»; e a quantidade de folhas
de papel, dilaceradas, amarfanhadas, que lhe juncavam o tapete aos pés, davam-lhe a sensação de ser todo elle uma ruina.
Foi realmente um allivio, uma tregoa n'aquella lucta com as idéas rebeldes, quando Baptista annunciou Villaça, que lhe vinha fallar de uma venda de montados no Alemtejo, pertencentes á sua legitima.
- Negociosinho, disse o administrador, pousando o chapéo a um canto da mesa e dentro um rolo de papeis, que lhe mette na algibeira para cima de dois contos de réis... E não é mau presente, logo assim pela manhã...
Carlos espreguiçou-se, crusando fortemente as mãos por trás da cabeça:
- Pois olhe, Villaça, preciso bem de dous contos de réis, mas preferia que me trouxesse ahi alguma lucidez de espirito... Estou hoje d'uma estupidez!
Villaça considerou-o um momento, com malicia.
- Quer v. ex.ª dizer que antes queria escrever uma bonita pagina do que receber assim perto de quinhentas libras? São gostos, meu senhor, são gostos... Elle é bom sahir-se a gente um Herculano ou um Garrett, mas dous contos de réis, são dous contos de réis... Olhe
que sempre valem um folhetim. Emfim, o negocio é este. Explicou-lh'o, sem se sentar, apressado, emquanto Carlos, de braços cruzados, considerava quanto era medonho o alfinete de peito que Villaça trazia (um macacão de coral comendo uma pera de ouro) e distinguia vagamente, atravez da sua neblina mental, que se tratava de um visconde de Torral e de porcos... Quando Villaça lhe apresentou os papeis, assignou-os com um ar moribundo.
- Então não fica para almoçar, Villaça? disse elle, vendo o procurador metter o seu rolo de papeis debaixo do braço.
- Muito agradecido a v. exa. Tenho de me encontrar com o nosso amigo Eusebio... Vamos ao ministerio do reino, elle tem lá uma pertenção... Quer a commenda da Conceição... Mas este governo está desgostoso com elle.
- Ah, murmurou Carlos com respeito e atravez d'um bocejo, o governo não está contente com o Eusebiosinho?
- Não se portou bem nas eleições. Ainda ha dias, o ministro do reino me dizia, em confidencia: «O Eusebio é rapaz de merecimento, mas atravessado...» V. Ex.ª n'outro dia, disse-me o Cruges, encontrou-o em Cintra.
- Sim, lá estava a fazer jus á commenda da Conceição.
Quando Villaça saiu Carlos retomou lentamente a penna, e ficou um momento, com os olhos na pagina meio-escripta, coçando a barba, desanimado e esteril. Mas quasi em seguida appareceu Affonso da Maia, ainda de chapéo, á volta do seu passeio matinal no
bairro, e com uma carta na mão, que era para Carlos, e que elle achara no escriptorio misturada ao seu correio. Além d'isso, esperava encontrar ali o Villaça.
- Esteve ahi, mas deitou a correr, para ir arranjar uma commenda para o Eusebiosinho - disse Carlos, abrindo a carta.
E teve uma surpreza, vendo no papel - que cheirava a verbena como a condessa de Gouvarinho - um convite do conde para jantar no sabbado seguinte, feito em termos de sympathia tão escolhidos que eram quasi poeticos; tinha mesmo uma phrase sobre a amisade, fallava dos atomos em gancho de Descartes. Carlos desatou a rir, contou ao avô que era um par do reino que o convidava a jantar, citando Descartes...
- São capazes de tudo, murmurou o velho.
E dando um olhar risonho aos manuscriptos espalhados sobre a banca:
- Então, aqui, trabalha-se, hein?
Carlos encolheu os hombros:
- Se é que se póde chamar a isto tabalhar... Olhe ahi para o chão. Veja esses destroços... Em quanto se trata de tomar notas, colligir documentos, reunir materiaes, bem, lá vou indo. Mas quando se trata de pôr as idéas, a observação, n'uma fórma de gosto e de symetria, dar-lhe côr, dar-lhe relevo, então... Então foi-se!
- Preoccupação peninsular, filho, disse Affonso, sentando-se ao pé da mesa, com o seu chapéo desabado na mão. Desembaraça-te d'ella. É o que eu dizia n'outro dia ao Craft, e elle concordava... O portuguez nunca póde ser homem de idéas, por causa da paixão da fórma. A sua mania é fazer bellas phrases, vêr-lhes o brilho, sentir-lhes a musica. Se fôr necessario falsear a idéa, deixal-a incompleta, exageral-a, para a phrase ganhar em belleza, o desgraçado não hesita... Vá-se pela agoa abaixo o pensamento, mas salve-se a bella phrase.
- Questão de temperamento, disse Carlos. Ha sêres inferiores, para quem a sonoridade de um adjectivo é mais importante que a exactidão de um systema... Eu sou d'esses monstros.
- Diabo! então és um rhetorico...
- Quem o não é? E resta saber por fim se o estylo não é uma disciplina do pensamento. Em verso, o avô sabe, é muitas vezes a necessidade de uma rima que produz a originalidade de uma imagem... E quantas vezes o esforço para completar bem a cadencia de uma phrase, não poderá trazer desenvolvimentos novos e inesperados de uma idéa... Viva a bella phrase!
- O sr. Ega annunciou o Baptista, erguendo o reposteiro, quando começava justamente a tocar a sineta do almoço.
- Fallae na phrase... - disse Affonso, rindo.
- Hein? Que phrase? O que?... - exclamou Ega, que rompeu pelo quarto, com o ar estonteado, a barba por fazer, a gola do paletot levantada. Oh! por aqui a esta hora sr. Affonso da Maia! Como está v. ex.ª? Dize-me cá, Carlos, tu é que me podes tirar d'uma
atrapalhação... Tu terás por acaso uma espada que me sirva?
E, como Carlos o olhava assombrado, acrescentou, já impaciente:
- Sim, homem, uma espada! Não é para me batter, estou em paz com toda a humanidade... É para esta noute, para o fato de mascara.
O Mattos, aquelle animal, só na vespera lhe dera o costume para o baile: e, qual é o seu horror, ao vêr que lhe arranjara, em logar de uma espada artistica, um sabre da guarda municipal! Tivera vontade de lh'o passar atravez das entranhas. Correu ao tio Abrahão, que só tinha espadins de côrte, reles e pelintras como a propria côrte! Lembrara-se do Craft e da sua collecção; vinha de lá; mas ahi eram uns espadões de ferro, catanas pesando arrobas, as durindanas tremendas dos brutos que conquistaram a India... Nada que lhe servisse. Fôra então que lhe tinham vindo á idéa as panóplias antigas do Ramalhete.
- Tu é que deves ter... Eu preciso uma espada longa e fina, com os copos em concha, d'aço rendilhado, forrados de velludo escarlate. E sem cruz, sobretudo sem cruz!
Affonso, tomando logo um interesse paternal por aquella difficuldade do John, lembrou que havia no corredor, em cima, umas espadas hespanholas...
- Em cima, no corredor? exclamou Ega, já com a mão no reposteiro.
Inutil precipitar-se, o bom John não as poderia encontrar. Não estavam á vista, arranjadas em panoplia, conservavam-se ainda nos caixões em que tinham vindo de Bemfica.
- Eu lá vou, homem fatal, eu lá vou, disse Carlos, erguendo-se com resignação. Mas olha que ellas não têem bainhas.
Ega ficou succumbido. E foi ainda Affonso que achou uma idéa, o salvou.
- Manda fazer uma simples bainha de velludo negro; isso faz-se n'uma hora. E manda-lhe cozer ao comprido rodellas de velludo escarlate...
- Explendido, gritou Ega: o que é ter gosto!
E apenas Carlos sahiu, trovejou contra o Mattos.
- Veja v. ex.ª isto, um sabre da guarda municipal! E é quem faz ahi os fatos para todos os theatros! Que idiota!... E é tudo assim, isto é um paiz insensato!...
- Meu bom Ega, tu não queres tornar de certo Portugal inteiro, o Estado, sete milhões d'almas, responsaveis por esse comportamento do Mattos?
- Sim senhor, exclamava o Ega passeiando pelo gabinete, com as mãos enterradas nos bolsos do paletot; sim senhor, tudo isso se prende. O costumier com um fato do seculo XIV manda um sabre da guarda municipal; por seu lado o ministro, a proposito de impostos, cita as Meditações de Lamartine; e o litterato, essa besta suprema...
Mas calou-se, vendo a espada que Carlos trazia na mão, uma folha do seculo XVI, de grande tempera, fina e vibrante, com copos trabalhado como uma renda - e tendo gravado no aço o nome illustre do espadeiro, Francisco Ruy de Toledo.
Embrulhou-a logo n'um jornal, recusou á pressa o almoço que lhe ofereciam, deu dous vivos shake-hands, atirou o chapéu para a nuca, ia abalar, quando a voz de Affonso o deteve:
- Ouve la, John, dizia o velho alegremente, isso é uma espada cá da casa, que nunca brilhou sem gloria, creio eu... Vê como te serves d'ella!
Ao pé do resposteiro, Ega voltou-se, exclamou, apertando contra o peito do paletot o ferro, enrolado no Jornal do Commercio:
- Não a sacarei sem justiça, nem a embainharei sem honra. Au revoir!
- Que vida, que mocidade! murmurou Affonso. Muito feliz é este John!... Pois vae-te arranjando filho, que já tocou a primeira vez para o almoço.
Carlos ainda se demorou um instante a reler, com um sorriso, a apparatosa carta do Gouvarinho; e ia emfim chamar o Baptista para se vestir, quando em baixo, á entrada particular, o timbre electrico começou a vibrar violentamente. Um passo ancioso ressoou na
ante-camara, o Damaso appareceu esbaforido, d'olho esgazeado, com a face em braza. E, sem dar tempo a que Carlos exprimisse a surpreza de o ver emfim no Ramalhete, exclamou, lançando os braços ao ar:
- Ainda bem que te encontro, caramba! Quero que venhas d'ahi, que me venhas ver um doente... Eu te explicarei... É aquella gente brazileira. Mas pelo amor de Deus, vem depressa, menino!
Carlos erguera-se, pallido:
- É ella?
- Não, é a pequena, esteve a morrer... Mas veste-te, Carlinhos, veste-te, que a responsabilidade é minha!
- É um bébé, não é?
- Qual bébé!... É uma pequena crescida, de seis annos... Anda d'ahi!
Carlos, já em mangas de camisa, estendia o pé ao Baptista, que, com um joelho em terra, apressado tambem, quasi fez saltar os botões da bota. E Damaso, de chapéu na cabeça, agitava-se, exagerando a sua impaciencia, a estalar de importancia.
- Sempre a gente se vê em coisas!... Olha que responsabilidade a minha! Vou visital-os, como costumo ás vezes, de manhã... E vae, tinham partido para Queluz.
Carlos voltou-se, com a sobrecasaca meia vestida:
- Mas então?...
- Escuta, homem! Foram para Queluz, mas a pequena ficou com a governanta... Depois do almoço deu-lhe uma dôr. A governante queria um medico inglez, porque não falla senão inglez... Do hotel foram procurar o Smith, que não appareceu... E a pequena a morrer!... Felizmente, cheguei eu, e lembrei-me logo de ti... Foi sorte encontrar-te, caramba!
E acrescentou, dando um olhar ao jardim:
- Tambem, irem a Queluz com um dia d'estes! Hão-de-se divertir... Estás prompto, hein? Eu tenho lá em baixo o coupé... Deixa as luvas, vaes muito bem sem luvas!
- O avô que não me espere para almoçar, gritou Carlos ao Baptista, já do fundo da escada.
Dentro do coupé, um ramo enorme enchia quasi o assento.
- Era para ella, disse o Damaso, pondo-o sobre os joelhos. Pela-se por flores.
Apenas o coupé partiu, Carlos cerrando a vidraça, fez a pergunta que desde a apparição do Damaso lhe faiscava nos labios.
- Mas então tu, que querias quebrar a cara a esse Castro Gomes?...
O Damaso contou logo tudo, triumphante. Fôra tudo um equivoco! Ah, as explicações do Castro Gomes tinham sido d'um gentleman. Senão quebrava-lhe a cara. Isso não, desconsiderações, a ninguem! a ninguem! Mas fôra assim: os bilhetes de visita que elle lhe deixara conservavam o seu adresse do Grand Hotel em Paris. E o Castro Gomes, suppondo que elle vivia lá, obdecendo á indicação, mandara para lá os seus cartões! Curioso, hein? E de estupido... E a falta de resposta aos telegrammas fôra culpa de Madame, descuido, n'aquelle momento de afflicção, vendo o marido com o braço escavacado... Ah, tinham-lhe dado satisfações humildes. E agora eram intimos, estava lá quasi sempre...
- Emfim, menino, um romance... Mas isso é para mais tarde!
O coupé parara á porta do Hotel Central. Damaso saltou, correu ao guarda portão.
Mandou o telegramma, Antonio?
- Já lá vae...
- Tu comprehendes, dizia elle a Carlos, galgando as escadas, mandei-lhes logo um telegramma para o hotel em Queluz. Não estou para ter mais responsabilidades!...
No corredor, defronte do escriptorio, um criado passava, com um guardanapo debaixo do braço:
- Como está a menina? gritou-lhe o Damaso.
O criado encolheu os hombros, sem comprehender.
Mas Damaso já trepava o outro lanço de escada, soprando, gritando:
- Por aqui Carlos, eu conheço isto a palmos! Numero 26!
Abriu com estrondo a porta do numero 26. Uma criada, que estava á janella, voltou-se.
Ah bonjour, Melanie! exclamava Damaso, no seu extraordinario francez. A creança estava melhor? l'enfant etait meilleur? Ali lhe trazia o doutor, monsieur le docteur Maia.
Melanie, uma rapariga magra e sardenta, disse que Mademoiselle estava mais socegada, e ella ia avisar miss Sarah, a governanta. Passou o espanador pelo marmore d'uma console, ageitou os livros sobre a meza, e sahiu, dardejando a Carlos um olhar vivo como
uma faisca.
A sala era espaçosa, com uma mobilia de réps azul, e um grande espelho sobre a console dourada, entre as duas janellas: a meza estava coberta de jornaes, de caixas de charutos, e de romances de Cappendu; sobre uma cadeira, ao lado, ficára enrolado um
bordado.
- Esta Melanie, esta desleixada, murmurava o Damaso, fechando a janella com um esforço sobre o feixo perro. Deixar assim tudo aberto! Jesus, que gente!
- Este cavalheiro é bonapartista, disse Carlos, vendo sobre a meza os numeros do Pays.
- Isso, temos questões terriveis! exclamou o Damaso. E eu enterro-o sempre... É bom rapaz, mas tem pouco fundo.
Melanie voltou pedindo a Monsieur le Docteur para entrar um instante no gabinete de toilette. E ahi, depois de apanhar uma toalhacahida, de dardejar a Carlos outro olharsinho petulante, disse que Miss Sarah vinha immediatamente, e retirou-se na ponta dos sapatos.
Fóra, na sala, ergueu-se logo a voz do Damaso, fallando a Melanie de sa responsabilité, et que il etait très affligé.
Carlos ficou só, na intimidade d'aquelle gabinete de toilette, que n'essa manhã ainda não fôra arrumado. Duas malas, pertencentes de certo a Madame, enormes, magnificas, com fecharias e cantos de aço polido, estavam abertas: d'uma trasbordava uma cauda rica, de seda forte côr de vinho: e na outra era um delicado alvejar de roupa branca, todo um luxo secreto e raro de rendas e baptistes, d'um brilho de neve, macio pelo uso e cheirando bem. Sobre uma cadeira alastrava-se um monte de meias de seda, de todos os tons, unidas, bordadas, abertas em renda, e tão leves, que uma aragem as faria voar; e, no chão corria uma fila de sapatinhos de verniz, todos do mesmo estylo, longos, com o tacão baixo, e grandes fitas de laçar. A um canto estava um cesto acolchoado de seda côr de rosa, onde
de certo viajara a cadellinha.
Mas o olhar de Carlos prendia-se sobre tudo a um sophá onde ficára estendido, com as duas mangas abertas, á maneira de dous braços que se offerecem, o casaco branco de velludo lavrado de Genova com que elle a vira, a primeira vez, apear-se á porta do hotel.
O forro, de setim branco, não tinha o menor acolxoado, tão perfeito devia ser o corpo que vestia: e assim, deitado sobre o sophá, n'essa attitude viva, n'um desabotoado de semi-nudez, adiantando em vago relevo o cheio de dois seios, com os braços alargando-se, dando-se todos, aquelle estofo parecia exhalar um calor humano, e punha ali a fórma d'um corpo amoroso, desfallecendo n'um silencio d'alcova. Carlos sentiu bater o coração. Um perfume indefinido e forte de jasmim, de marechala, de tanglewood, elevava-se de todas
aquellas cousas intimas, passava-lhe pela face com um bafo suave de caricia...
Então desviou os olhos, approximou-se da janella, que tinha por perspectiva a fachada enxovalhada do hotel Shneid. Quando se voltou, miss Sarah estava diante d'elle, vestida de preto e muito córada: era uma pessoa sympathica, redondinha e pequena, com um ar de rola farta, os olhos sentimentaes, e uma testa de virgem sob bandós lisos e louros. Balbuciava umas palavras em francez, em que Carlos só percebeu docteur.
- Yes, I am the doctor, disse elle.
A face da boa ingleza illuminou-se. Oh! era tão bom, ter emfim com quem se entender! A menina estava muito melhor! Oh, o doutor vinha livral-
a d'uma responsabilidade!...
Abriu o reposteiro, fêl-o penetrar n'um quarto com as janellas todas cerradas, onde elle apenas distinguiu a fórma d'um grande leito e o brilho de cristaes n'um toucador. Perguntou para que eram aquellas trevas?
Miss Sarah pensara que a escuridão faria bem á menina, e a adormeceria. E trouxera-a ali para o quarto da mamã, por ser mais largo e mais arejado.
Carlos fez abrir as janellas: e, quando a grande luz entrou, ao avistar a pequena no leito, sob os cortinados abertos, não conteve a sua admiração.
- Que linda creança!
E ficou um instante a contemplal-a, n'um enlevo d'artista, pensando que os brancos mais mimosos, mais ricos, sob a mais sabia combinação de luz, não egualariam a pallidez eburnea d'aquella pelle maravilhosa: e esta adoravel brancura era ainda realçada por um
cabello negro, tenebroso, forte, que reluzia sob a rede. Os seus por dois olhos grandes, d'um azul profundo e liquido, pareciam n'esse instante maiores, muito serios, e muito abertos para elle.
Estava encostada a um grande travesseiro, toda quieta, com o susto ainda da dôr, perdida n'aquelle vasto leito, e apertando nos braços uma enorme boneca paramentada, de pello riçado, d'olhos tambem azues e arregalados tambem.
Carlos tomou-lhe a mãosinha e beijou-lh'a, - perguntando se a boneca tambem estava doente.
- Cri-cri tambem teve dôr, respondeu ella muito séria, sem tirar d'elle os seus magnificos olhos. Eu já não tenho...
Estava com effeito fresca como uma flor, com a lingoasinha muito rosada, e a sua vontade já de lunchar.
Carlos tranquillisou miss Sarah. Oh, ella via bem que mademoiselle estava boa. O que a assustara fôra achar-se ali só, sem a mamã, com aquella responsabilidade. Por isso a tinha deitado... Oh se fosse uma creança ingleza saía com ella para o ar... Mas estas meninas
estrangeiras, tão debeis, tão delicadas... E o labiosinbo gordo da ingleza trahia um desdem compassivo por estas raças inferiores e deterioradas.
- Mas a mamã não é doente?
Oh, não! Madame era muito forte. O senhor, esse sim, parecia mais fraco...
- E, como se chama a minha querida amiga? perguntou Carlos, sentado á cabeceira do leito.
- Esta é Cri-cri, disse a pequena, apresentando outra vez a boneca. Eu chamo-me Rosa, mas o papá diz que eu que sou Rosicler.
- Rosicler? realmente? disse Carlos sorrindo d'aquelle nome de livro de cavallaria, rescendente a torneios, e a bosques de fadas.
Então, como colhendo simplesmente informações de medico, perguntou a miss Sarah se a menina sentira a mudança de clima.
Habitavam ordinariamente Paris, não é verdade?
Sim, viviam em Paris no inverno, no parque Monceaux; de verão iam para uma quinta da Touraine, ao pé mesmo de Tours, onde ficavam até ao começo da caça; e iam sempre passar um mez a Dieppe. Pelo menos fora assim, nos ultimos tres annos, desde que ella
estava com Madame.
Emquanto a ingleza fallava, Rosa, com a sua boneca nos braços, não cessava de olhar Carlos gravemente e como maravilhada. Elle, de vez em quando, sorria-lhe, ou acariciava-lhe a mãosinha. Os olhos da mãe eram negros: os do pae d'azeviche e pequeninos: quem
herdara ella aquellas maravilhosas pupillas d'um azul tão rico, liquido e doce.
Mas a sua visita de medico findara, ergueu-se para receitar um calmante. Emquanto a ingleza preparava muito cuidadosamente o papel, e experimentava a pena, elle examinou um momento o quarto. N'aquella installação banal d'hotel, certos retoques d'uma elegancia
delicada revelavam a mulher de gosto e de luxo: sobre a commoda e sobre a meza havia grandes ramos de flores: os travesseiros e os lençoes não eram do hotel, mas proprios, de bretanha fina, com rendas e largos monogrammas bordados a duas côres. Na poltrona que ella usava uma cachemira de Tarnah disfarçava o medonho reps desbotado.
Depois, ao escrever a receita, Carlos notou ainda sobre a meza alguns livros de encadernações ricas, romances e poetas inglezes: mas destoava ali, estranhamente, uma brochura singular - o Manual de interpretação dos sonhos. E ao lado, em cima do toucador, entre os marfins das escovas, os cristaes dos frascos, as tartarugas finas, havia outro objecto estravagante, uma enorme caixa de pó de arroz, toda de prata dourada, com uma magnifica safira engastada na tampa dentro d'um circulo de brilhantes miudos, uma joia exagerada de
cocotte, pondo ali uma dissonancia audaz de explendor brutal.
Carlos voltou junto do leito, e pediu um beijo a Rosicler: ella estendeu-lhe logo a boquinha fresca como um botão de rosa; elle não ousou beijal-a assim n'aquelle grande leito da mãe, e tocou-lhe apenas na testa.
- Quando vens tu outra vez? perguntou ella agarrando-o pela manga do casaco.
- Não é necessario vir outra vez, minha querida. Tu estás boa, e Cri-cri tambem.
- Mas eu quero o meu lunch... Dize a Sarah que eu posso tomar o meu lunch... E Cri-cri tambem.
- Sim já podeis ambas petiscar alguma cousa...
Fez as suas recommendações á mestra, e depois, apertando a mãosinba da pequena:
- E agora adeus, minha linda Rosicler, uma vez que és Rosicler...
E não quiz ser menos amavel com a boneca, deu-lhe tambem um shake-hands.
Isto pareceu captivar Rosa ainda mais. A ingleza, ao lado, sorria, com duas covinhas na face.
Não era necessario, lembrou Carlos, conservar a creança na cama, nem tortural-a com cautellas exageradas...
- Oh, nò, sir!
E se a dôr reapparecesse, ainda que ligeira, mandal-o logo chamar...
- Oh yes, sir!
E ali deixava o seu bilhete, com a sua adresse.
- Oh thank you, sir!
Ao voltar á sala, o Damaso saltou do sophá, onde percorria um jornal, como uma féra a quem se abre a jaula.
- Credo, imaginei que ias lá ficar toda a vida! Que estivestes tu a fazer? Irra, que estopada!
Carlos, calçando as luvas, sorria, sem responder.
- Então, é cousa de cuidado?
- Não tem nada. Tem uns lindos olhos... E um nome extraordinario.
- Ah, Rosicler, murmurou Damaso, agarrando o chapéo com mau modo; muito ridiculo, não é verdade?
A creada franceza appareceu outra vez a abrir a porta da sala, - dardejando para Carlos o mesmo olhar quente e vivo. Damaso recommendou-lhe muito que dissesse aos senhores, que elle tinha vindo logo com o medico; e que havia de voltar á noite para lhes fazer uma surpreza, e para saber se tinham gostado de Queluz - si ils avaient aimè Queluz.
Depois, ao passar diante do escriptorio, metteu a cabeça, para dizer ao guarda-livros, que a menina estava boa, tudo ficava em socego.
O guarda livros sorrio e cortejou.
- Queres que te vá levar a casa? perguntou elle a Carlos, em baixo, abrindo a porta do coupé, ainda com um resto de mau humor.
Carlos preferia ir a pé.
- E acompanha-me tu um bocado, Damaso, tu agora não tens que fazer.
Damaso hesitou, olhando o céu aspero, as nuvens pesadas de chuva. Mas Carlos tomara-lhe o braço, arrastava-o, amavel e gracejando.
- Agora que te tenho aqui, velhaco, homem fatal, quero o romance... Tu disseste que tinhas um romance. Não te largo. És meu. Venha o romance. Eu sei que os tens sempre bons. Quero o romance!
Pouco a pouco Damaso sorria, as bochechas esbrazeavam-se-lhe de satisfação.
- Vae-se fazendo pela vida, disse elle a estoirar de jactancia.
- Vocês estiveram em Cintra?...
- Estivemos, mas isso não foi divertido... O romance é outro!
Desprendeu-se do braço de Carlos, fez um signal ao cocheiro para que os seguisse, e regalou-se pelo Aterro fóra de contar o seu romance.
- A coisa é esta... O marido d'aqui a dias vai para o Brazil, tem lá negocíos. E ella fica! Fica com as criadas e com a pequena, á espera, dois ou tres mezes. Diz que já andaram até a vêr casas mobiladas, que ella não quer estar no hotel... E eu, intimo, a única pessoa que ella conhece, mettido de dentro... Hein, percebes agora?
- Perfeitamente, disse Carlos, arrojando para longe o charuto, com um gesto nervoso. E de certo, a pobre creatura já está fascinada! Já lhe déste, como costumas, um beijo ardente entre duas portas! Já a desgraçada se surtiu da caixa de phosphoros, para mais tarde quando a abandonares!
Damaso enfiava.
- Não venhas já tu com o espirito e com a chufasinha... Não lhe dei beijos que ainda não houve occasião... Mas, o que te posso dizer, é que tenho mulher!
- Pois já era tempo, exclamou Carlos, sem conter um gesto brusco, e atirando-lhe as palavras como chicotadas. Já era tempo! Andavas ahi mettido com umas creaturas ignobeis, uma ralé de lupanar... Emfim, agora ha progresso. E eu gosto que os meus amigos vivam n'uma ordem de sentimentos decentes... Mas vê lá... Não sejas o costumado Damaso! Não te vás pôr a alardear isso pelo Gremio e pela casa Havaneza!
D'esta vez Damaso estacou, suffocado, sem comprehender aquelle modo, semelhante azedume. E terminou por balbuciar, livido:
- Tu podes entender muito de medicina e de bric-a-brac, mas lá a respeito de mulheres, e da maneira de fazer as cousas, não me dás licções...
Carlos olhou-o, com um desejo brutal de o espancar. E de repente, sentio-o tão innofensivo, tão insignificante, com o seu ar bochechudo, e molle, que se envergonhou do surdo despeito que o atravessara, tomou-lhe o braço, teve duas palavras amaveis.
- Damaso, tu não me comprehendeste. Eu não te quiz fazer zangar... É para teu bem... O que eu receava é que tu, imprudente, arrebatado, apaixonado, fosses perder essa bella aventura por uma indiscríção...
E o outro ficou logo contente, sorrindo já, abandonando-se ao braço do seu amigo, certo que o desejo do Maia era que elle tivesse uma amante chic. Não, elle não se tinha zangado, nunca se zangava com os intimos... Comprehendia bem que o que Carlos dizia era por amisade...
- Mas tu, ás vezes, tens essa cousa que te pegou o Ega, gostas do teu bocadinho de espirito...
E então tranquillisou-o. Não, por imprudencia não havia elle de «perder a cousa». Aquillo ia com todas as regras. Lá n'isso sobrava-lhe experiencia. A Melanie já a tinha na mão; já lhe dera duas libras.
- Isto de mais a mais é uma cousa muito seria... Ella conhece meu tio, é intima d'elle desde pequena, tratam-se até por tu...
- Que tio?
- Meu tio Joaquim... Meu tio Joaquim Guimarães. Mr. de Guimaran, o que vive em Paris, o amigo de Gambetta...
- Ah sim, o communista...
- Qual communista, até tem carruagem!
Subitamente lembrou-lhe outra cousa, um ponto de toilette em que queria consultar Carlos.
- Ámanhã vou jantar com elles, e vão tambem dois brazileiros, amigos d'elle, que chegaram ahi ha dias, e que partem pelo mesmo paquete... Um é chic, é da Legação do Brazil em Londres. De maneira que é jantar de ceremonia. O Castro Gomes não me disse nada; mas que te parece, achas que vá de casaca?...
- Sim, atira-lhe casaca, e uma boa rosa na lapella.
O Damaso olhou-o, pensativo.
- A mim tinha-me lembrado o habito de Christo.
- O habito de Christo... Sim, põe o habito de Christo ao pescoço, e põe a rosa na botoeira.
- Será talvez de mais, Carlos!
- Não, fica bem ao teu typo.
Damaso fizera parar o coupé que os tinha seguido a passo. E no ultimo aperto de mão a Carlos:
- Tu sempre vaes á noite, aos Cohens, de dominó? O meu fato de selvagem ficou divino. Eu venho mostral-o á noite á brazileira... Entro no Hotel embrulhado n'um capote, e appareço-lhes de repente na sala, de selvagem, de Nelusko, a cantar:

Alerta, marinari,
Il vento cangia...

Chic a valer!... Good bye!


Ás dez horas Carlos vestia-se para o baile dos Cohens. Fóra, a noite fizera-se tenebrosa, com lufadas de vento, pancadas d'agoa, que a cada instante batiam agrestemente o jardim. Ali, no gabinete de toilette, errava no ar tepido um vago aroma de sabonete e de bom charuto. Sobre duas commodas de pau preto, marchetadas a marfim, duas serpentinas de velho bronze erguiam os seus molhos de vellas accezas, pondo largos reflexos doces sobre a seda castanha das paredes. Ao lado do alto espelho-psyché alastrava-se, em cima d'uma poltrona, o dominó de já setim negro com um grande laço azul-claro.
Baptista, com a casaca na mão, esperava que Carlos acabasse a chavena de chá preto que elle estava bebendo aos golos, de pé, em mangas de camisa, e de gravata branca.
De repente, o timbre electrico da porta particular reteniu, apressado e violento.
- Talvez outra surpreza, murmurou Carlos, hoje é o dia das surprezas...
Baptista sorriu, ia pousar a casaca para abrir - quando em baixo vibrou outro repique brutal, d'uma impaciencia phrenetica.
Então Carlos, curioso, sahiu á ante-camara: e ahi, á meia luz das lampadas Carcel, ainda quebrantada pelo tom dos velludos côr de cereja, viu, ao abrir-se a porta por onde entrou um sopro aspero da noite, apparecer vivamente uma fórma esguia e vermelha, com um
confuso tinir de ferro. Depois, pela escada acima, duas pennas negras de gallo ondearam, um manto escarlate esvoaçou - e o Ega estava diante d'elle, caracterisado, vestido de Mephistopheles!
Carlos apenas poude dizer bravo - o aspecto do Ega emmudeceu-o. Apezar dos toques de caracterisação que quasi o mascaravam, sobrancelhas de diabo, guias de bigode ferozmente exageradas - sentia-se bem a afflicção em que vinha, com os olhos injectados, perdido, n'uma terrivel pallidez. Fez um gesto a Carlos, arremessou-se pelo gabinete dentro. Baptista, logo, discretamente, retirou-se cerrando o reposteiro.
Estavam sós. Então Ega, apertando desesperadamente as mãos, n'uma voz rouca e d'agonia:
- Tu sabes o que me succedeu, Carlos?
Mas não poude dizer mais, suffocado, tremendo todo; e diante d'elle, devorando-o com os olhos, Carlos tremia tambem, enfiado.
- Cheguei a casa dos Cohens, continuou Ega por fim com esforço e quasi balbuciando, mais cedo, como tinhamos combinado. Ao entrar na sala, já estavam duas ou tres pessoas... Elle vem direito a mim, e diz-me: «Você, seu infame, ponha-se já no meio da rua... Já
no meio da rua senão, diante d'esta gente, corro-o a pontapés!» E eu, Carlos...
Mas a colera outra vez abafou-lhe a voz. E esteve um momento mordendo os beiços, recalcando os soluços, com os olhos reluzentes de lagrimas.
Quando as palavras voltaram, foi uma explosão selvagem:
- Quero-me batter em duello com aquelle malvado, a cinco passos, metter-lhe uma bala no coração!
Outros sons estrangulados escaparam-se-lhe da garganta; e, batendo furiosamente o pé, esmurrando o ar, berrava, sem cessar, como cevando-se na estridencia da propria voz.
- Quero matal-o! Quero matal-o! Quero matal-o!
Depois, allucinado, sem ver Carlos, rompeu a passear desabridamente pelo quarto, ás patadas, com o manto deitado para traz, a espada mal afivelada batendo-lhe as canellas escarlates.
- Então descobriu tudo, murmurou Carlos.
- Está claro que descobriu tudo! exclamou o Ega, no seu passear arrebatado, atirando os braços ao ar. Como descobriu, não sei. Sei isto, já não é pouco. Poz-me fóra!... Hei-de-lhe metter uma bala no corpo! Pela alma de meu pae, hei-de-lhe varar o coração!... Quero que vás lá logo pela manhã com o Craft... E as condições são estas: á pistolla, a quinze passos!
Carlos, agora outra vez sereno, acabava a sua chavena de chá. Depois disse muito simplesmente:
- Meu querido Ega, tu não podes mandar desafiar o Cohen.
O outro estacou de repellão, atirando pelos olhos dois relampagos d'ira - a que as medonhas sobrancelhas de crepe, as duas pennas de gallo ondeando na gorra, davam uma ferocidade theatral e comica.
- Não o posso mandar desafiar?
- Não.
- Então põe-me fóra de casa...
- Estava no seu direito.
- No seu direito!... Diante de toda a gente?...
- E tu, não eras amante da mulher diante de toda a gente?...
O Ega ficou a olhar um momento para Carlos, como atordoado. Depois fez um grande gesto:
- Não se trata da mulher!... não se fallou da mulher!... É uma questão d'honra para mim, quero mandal-o desafiar, quero matal-o...
Carlos encolheu os hombros.
- Tu não estás em ti. Tens só uma coisa a fazer; é ficar ámanhã em casa, a vêr se elle te manda desafiar a ti...
- O que, o Cohen! exclamou Ega. É um covarde, é um canalha!... Ou o mato, ou lhe rasgo a cara com um chicote. Desafiar-me! Olha quem... Tu estás doido...
E recomeçou o seu passear desabalado do espelho para a janella, soprando, rilhando os dentes, com repellões para traz ao manto que faziam oscillar, nas serpentinas, as chammas altas das vellas.
Carlos não dizia nada, de pé junto da meza, enchendo lentamente de novo a sua chavena. Tudo aquillo começava a parecer-lhe pouco serio, pouco digno, as ameaças de pontapés do marido, os furores melodramaticos do Ega: - e mesmo não podia deixar de sorrir diante d'aquelle Mephistopheles esgouroviado, espalhando pelo quarto o brilho escarlate do seu manto de velludo, e a fallar furiosamente d'honra e de morte, com sobrancelhas postiças, e escarcella de coiro á cinta.
- Vamos fallar ao Craft! exclamou de repente Ega, parando, com esta brusca resolução. Quero vêr o que diz o Craft. Tenho lá em baixo uma tipoia, estamos lá n'um instante!
- Ir agora á quinta, aos Olivaes? disse Carlos, olhando o relogio.
- Se és meu amigo, Carlos!...
Carlos immediatamente, sem chamar o Baptista, acabou de se vestir.
Ega, no entanto, ia preparando uma chavena de chá, deitando-lhe rhum, ainda tão nervoso, que mal podia segurar a garrafa. Depois, com um grande suspiro, accendeu uma cigarrete. Carlos entrára na alcova de banho, ao lado, allumiada por um forte jacto de gaz que assobiava. Fóra, a chuva continuava seguida e monotona, as goteiras escoavam-se no chão molle do jardim.
- Achas que a tipoia aguentará? perguntou Carlos de dentro.
- Aguenta, é o Canhôto, disse Ega.
Agora reparara no dominó, fôra erguel-o, examinava-lhe o setim rico, o bello laço azul claro. Depois, tendo encontrado diante de si o grande espelho-psyché, entalou o monoculo no olho, recuou um passo, contemplou-se d'alto a baixo; - e terminou por pousar uma
das mãos na cinta, appoiar a outra, galhardamente, sobre os copos da espada.
- Eu não estava mal, oh Carlos, hein?
- Estavas explendido, respondeu o outro de dentro da alcova. Foi pena estragar-se tudo... Como estava ella?
- Devia estar de Margarida.
- E elle?
- A besta? De beduino.
E continuou ao espelho, gosando a sua figura esguia, as pennas da gorra, os sapatos bicudos de velludo, e a ponta flamante da espada erguendo o manto por traz, n'uma prega fidalga.
- Mas então, disse Carlos, apparecendo a enxugar as mãos, tu não fazes idéa do que se passou, o que elle diria á mulher, o
escandalo...
- Não faço idéa nenhuma, disse o Ega, agora mais sereno. Quando entrei na primeira sala estava elle, de beduino; estava um outro sujeito d'urso, e uma senhora não sei de que, de Tyrollesa creio eu... Elle veiu para mim, e disse-me aquillo: ponha-se fóra! Não sei mais
nada... Nem posso perceber... O canalha, se descobriu, naturalmente, para não estragar a festa, não disse nada a Rachel... Depois é que ellas são!
Ergueu as mãos para o ceu, murmurou:
- É horroroso!
Deu ainda uma volta pelo quarto, e depois n'uma outra voz, franzindo a face:
- Não sei que diabo aquelle Godefroy me deu para collar as sobrancelhas, que me picam que tem diabo!
- Tira-as...
Deante do espelho, Ega hesitava em desmanchar o seu semblante feroz de Santanaz. Mas arrancou-as por fim - e a gorra emplumada, muito justa, que lhe escaldava a cabeça. Então Carlos lembrou-lhe que, para ir a casa do Craft, se desembaraçasse do manto e da espada, se agasalhasse n'um paletot d'elle. Ega deu ainda um longo e mudo olhar ao seu flamejante traje infernal, e com um profundo suspiro começou a desafivelar o talim. Mas o paletot era muito largo, muito comprido; teve de lhe dar uma dobra nas mangas. Depois Carlos metteu-lhe um bonet escossez na cabeça. - E assim arranjado, com as canellas vermelhas de diabo apparecendo sob o paletot, a gargantilha escarlate á Carlos IX emergindo da gola, a velha casqueta de viagem na nuca, o pobre Ega tinha o ar lamentavel
d'um Satanaz pelintra, agasalhado pela caridade d'um gentleman, e usando-lhe o fato velho.
Baptista allumiou, grave e discreto. Ega ao passar por elle, murmurou:
- Isto vae mal, Baptista, isto vae mal...
O velho creado teve um movimento triste d'hombros, como significando que nada no mundo ia bem.
Na rua negra, a parelha quieta dobrava a cabeça sob a chuva. O Canhoto, ao ouvir fallar d'uma gorgeta de libra, fez um grande espalhafato, rompeu ás chicotadas; e a velha traquitana lá partiu a galope, a escorrer d'agua, atroando a calçada.
Por vezes um coupé particular crusava-os, os casacos de gutta-perche dos criados branquejavam á luz das lanternas. Então a idéa da festa que devia agora resplandecer; Margarida ignorando tudo, walsando nos braços d'outros, anciosa, á espera d'elle; a ceia depois, o champagne, as cousas brilhantes que elle teria dito - todas estas delicias perdidas se vinham cravar no coração do pobre Ega, arrancavam-lhe pragas surdas, Carlos fumava silenciosamente, com o pensamento no Hotel Central.
Depois de Santa Apolonia a estrada começou, infindavel, desabrigada, batida pelo ar agreste do rio. Nenhum dizia uma palavra, cada um para o seu canto, arripiados na friagem que entrava pelas gretas da tipoia. Carlos não cessava de vêr o casaco branco de velludo, com as duas mangas abertas, como dois braços que se offereciam...
Passava da uma hora quando chegaram á quinta: a sineta do portão, aos puxões do cocheiro encharcado, retumbou lugubre n'aquelle silencio escuro
de aldeia. Um cão ladrou furiosamente: outros latidos ao longe responderam; e ainda esperaram muito, antes que um creado, somnolento e resmungão, apparecesse com uma lanterna. Uma rua d'acacias conduzia á casa: o Ega praguejava, enterrando os seus bellos sapatos de velludo no chão lamacento.
Craft, surprehendido com aquelle tumulto, veiu-lhes ao encontro no corredor, de robe-de-chambre, e a Revista dos Dois Mundos debaixo do braço. Percebeu logo que havia desastre. Levou-os em silencio para o seu gabinete onde um bom lume de carvão na chaminé aquecia, alegrava o aposento todo estofado de cretones claros. Ambos foram direitos ao lume.
Ega rompera logo a contar o seu caso - emquanto Craft, sem espanto nem exclamações, ia preparando methodicamente sobre a meza tres grogs de cognac e limão. Carlos, sentado ao pé do fogão, aquecia os pés: e Craft veiu acabar de ouvir o Ega, accomodando-se tambem na sua poltrona, do outro lado da chaminé, com o seu cachimbo na bocca.
- Emfim, exclamou Ega, de pé, cruzando os braços, que me aconselhas tu agora?
- Tens a fazer só isto, disse Craft: esperar ámanhã em casa que elle te mande os seus padrinhos... Que tenho a certeza que não manda... E depois, se vos baterdes, deixar-te ferir ou matar.
- Perfeitamente o que eu disse, murmurou Carlos, provando o seu grog.
Ega olhou-os a ambos, successivamente, petrificado. E logo, n'um fluxo de palavras desordenadas, queixou-se de não ter amigos.
Ali estava, n'aquella crise, a maior da sua vida: e em logar de encontrar, nos seus camaradas de infancia e de Coimbra, apoio, solidariedade, lealdade à tort et à travers, abandonavam-n'o, pareciam querer enterral-o, e expol-o a irrisões maiores... Ia-se commovendo; os olhos vermelhejavam-lhe sob as lagrimas. E quando algum d'elles ia interrompel-o, n'uma palavra de senso, batia o pé, persistia na sua teima - um desafio, matar o Cohen, vingar-se! Tinha sido insultado. Não existia outra cousa. Não se tinha fallado na mulher. Era elle que devia primeiro mandar padrinhos, lavar a sua honra. Havia pessoas na sala, quando o outro o insultou. Havia um urso, e uma tyrolesa... E emquanto a deixar-se varar por uma bala, não! Tinha mais direito a viver que o Cohen, que era um burguez, e um agiota... E elle era um homem de estudo e de arte! Tinha na cabeça livros, idéas, cousas grandes. Devia-se ao paiz, á civilisação!... Se fosse ao campo, era para fazer a sua pontaria, e abater o Cohen, ali, como uma besta immunda...
- Mas o que é, é que não tenho amigos! gritou elle exhausto por fim, cahindo para o canto d'um sophá.
Craft bebia em silencio, e aos golos, o seu cognac.
Foi Carlos que se ergueu, serio e aspero. Elle não tinha direito de duvidar da sua amisade. Quando lhe tinha ella faltado? Mas era necessario não ser pueril, nem theatral... A questão estava simplesmente em que o Cohen o surprehendera, amando-lhe a mulher. Logo, podia matal-o, podia entregal-o aos tribunaes, podia escavacal-o na sala a pontapés...
- Ou peor, interrompeu Craft. Mandar-te a senhora, com este bilhetinho: «Guarde-a».
- Ou isso! continuava Carlos. Não, senhor: limita-se a prohibir-te a entrada em casa, um pouco asperamente, sim, mas indicando que, depois de ter feito isto, não quer nada mais violento, nem mais dramatico. Teve portanto um acto de moderação. E tu queres mandal-o desafiar por isso?...
Mas Ega revoltou-se outra vez, deu um pulo, disparatou pela sala, sem paletot agora, esguedelhado, parecendo mais phantastico n'aquelle simples gibão escarlate, com os sapatos de velludo enlameados, as longas pernas de cegonha cobertas de malha de seda
vermelha. E teimava que se não tratava d'isso! Não, não se tratava da mulher! A questão era outra...
Carlos então zangou-se.
- Para que diabo te expulsou elle de casa então? Não disparates, homem! Nós estamos-te a dizer o que faz um homem de senso. E é triste, que te custe tanto a perceber o que manda o senso. Trahiste um amigo teu... Nada de equivocos! tu declaravas bem alto a tua
amisade pelo Cohen. Trahistel-o, tens de acceitar a lei: se elle te quizer matar tens de morrer. Se elle não quizer fazer nada, tens de ficar de braços cruzados. Se elle te quizer chamar ahi por essas ruas um infame, tens de baixar a cabeça, e reconhecer-te infame...
- Então tenho de engolir a affronta?
Os dois amigos explicaram-lhe que aquelle fato de Satanaz lhe perturbava a lucidez do criterio mundano - e que chegava a ser torpe fallar elle, Ega, de affronta.
Ega, outra vez acabrunhado sobre o sophá, conservou um momento a cabeça enterrada nas mãos.
- Eu já nem sei, disse elle por fim. Vocês devem ter rasão... Eu estou-me a sentir idiota... Então, vamos, que hei de eu fazer?
- Vocês teem a tipoia á espera? perguntou tranquillamente Craft.
Carlos mandara desapparelhar, recolher o gado esfalfado.
- Excellente! Então, meu caro Ega, tens outra cousa a fazer, antes de morrer ámanhã talvez, é cear esta noite. Eu ia ceiar, e por motivos longos d'explicar, ha n'esta casa um peru frio. E ha-de haver uma garrafa de Bourgonhe...
D'ahi a pouco estavam á mesa - n'aquella bella sala de jantar do Craft, que encantava sempre Carlos, com as suas tapeçarias ovaes representando bocados solitarios d'arvoredo, as severas faenças da Persia, e a sua original chaminé flanqueada por duas figuras negras
de Nubios com olhos rutilantes de crystal. Carlos, que se declarara esfomeado, trinchava já o perú, emquanto Craft, desarrolhava, com veneração, duas garrafas do seu velho Chambertin, para reconfortar Mephistopheles.
Mas Mephistopheles, sombrio e com os olhos avermelhados, repelliu o prato, desviou o copo. Depois, sempre condescendeu em provar o Chambertin.
Pois eu, dizia Craft empunhando o talher, quando vocês chegaram, estava a lêr um artigo interessante sobre a decadencia do protestantismo em Inglaterra...
- Que é aquillo, além, n'aquella lata? perguntou Ega, com uma voz moribunda.
Um pâté de foie-gras. Mephistopheles escolheu com tedio uma trufa.
- Bem bom, este teu Chambertin, suspirou elle.
- Anda come e bebe com franqueza, gritou-lhe Craft. Não te romantises. Tu o que tens é fome. Todas as tuas idéas esta noite se ressentem da debilidade!
Então Ega confessou que devia estar fraco. Com aquella excitação do seu trage de Satanaz nem jantára, contando ceiar bem em casa do outro... Sim, com effeito, tinha appetite! Excellente foie-gras...
E d'ahi a pouco devorava: foram talhadas de perú, uma porção immensa de lingua d'Oxford, duas vezes presunto d'York, todas aquellas boas cousas inglezas que havia sempre em casa do Craft. E elle só bebeu quasi toda uma garrafa de Chambertin.
O escudeiro fôra preparar o café: e, no entanto, ia-se discutindo, em todas as hypotheses, a attitude provavel do Cohen com a mulher. Que faria elle? Talvez lhe perdoasse. Ega affirmava que não: era vaidoso, e de rancores longos! N'um convento tambem não a fechava, sendo judia...
- Talvez a mate, disse Craft, com toda a seriedade. Ega, já com os olhos brilhantes do Bourgogne, declarou tragicamente que elle então entrava n'um mosteiro. Os dois gracejaram, sem piedade. Em que mosteiro queria elle entrar? Nenhum era congenere com o Ega! Para dominicano era muito magro, para trapista muito lascivo, muito palrador para jesuita, e para benedictino muito ignorante... Era necessario crear uma ordem para elle! Craft lembrou a Santa Blague!
- Vocês não teem coração, exclamou Ega, enchendo outro grande copo. Vocês não sabem, eu adorava aquella mulher!
Então largou a fallar de Rachel. E teve alli, de certo, os momentos melhores de toda aquella paixão, - porque poude, sem escrupulo, fazer reluzir a sua aureola de amante, banhar-se no mar de leite das confidencias vaidosas. Começou por contar o encontro com ella na Foz - emquanto Craft, sem perder uma palavra, como quem se instrue, se erguera a abrir uma garrafa de Champagne. Disse depois os passeios na Cantareira; as cartinhas ainda hesitantes e platonicas, trocadas entre folhas de livros emprestados, em que ella se assignava Violetta de Parma; o primeiro beijo, o melhor, surripiado entre duas portas, emquanto o marido correra acima a buscar-lhe charutos especiaes; os rendez-vous no Porto, no Cemiterio do Repouso, as pressões ardentes de mãos á sombra dos cyprestes, e os planos de voluptuosidade combinados entre as lapides funebres...
- Muito curioso! dizia o Craft.
Mas Ega teve de se calar, o criado entrava com o café. Emquanto se enchiam as chavenas, e Craft fôra buscar uma caixa de charutos, elle acabou a garrafa de Champagne, já pallido, com o nariz afilado.
O criado sahiu, correndo o reposteiro de tapeçaria: e logo Ega, com o calice de cognac ao lado, recomeçou as confidencias, contou a volta a Lisboa, a Villa Balzac, as manhãs deliciosas passadas lá com ella no calor d'um ninho d'amor...
Mas agora interrompia-se, vago e com os olhos turvos, enterrando um momento a cabeça entre os punhos. Depois lá vinha outro detalhe, os nomes lubricos que ella lhe dava, uma certa coberta de seda preta onde ella brilhava como um jaspe... Duas lagrimas embaciaram-lhe os olhos, jurou que queria morrer!
- Se vocês soubessem que corpo de mulher! gritou elle de repente. Oh meninos, que corpo de mulher... Imaginem vocês um peito...
- Não queremos saber, disse Carlos. Cala-te, tu estás bebado, miseravel!
Ega ergueu-se, retezando a perna, arrimado de lado á meza.
Bebado! Elle? Ora essa!... Era cousa que não podia, era empiteirar-se. Tinha feito o possivel, bebido tudo, até agua raz. Nunca! Não podia...
- Olha, vou pôr aquella garrafa á boca, tu verás... E fico frio, fico impassivel. A discutir philosophia... Queres que te diga o que penso de Darwin? É uma besta... Ora ahi tens. Dá cá a garrafa.
Mas Craft recusou-lh'a; e, um momento Ega ficou oscillando, a olhar para elle, com a face livida.
- Ou me dás a garrafa... ou me dás a garrafa, ou te metto uma bala no coração... Não, nem vales a bala... Vou-te dar uma bolacha!
De repente os olhos cerraram-se-lhe, abatteu-se sobre a cadeira, d'ahi sobre o chão, como um fardo.
- Terra! disse tranquillamente Craft.
Tocou a campainha, o escudeiro entrou, apanharam João da Ega. E emquanto o levavam para o quarto dos hospedes e lhe despiam o fato de Satanaz,
não cessou de choramingar, dando beijos babosos pelas mãos de Carlos, balbuciando:
- Rachelsinha!... Racaqué, minha Raquesinha! gostas do teu bibichinho?...
Quando Carlos partiu na tipoia para Lisboa, não chovia, um vento frio ia varrendo o ceu, já clareava a alvorada.
Ao outro dia, ás dez horas, Carlos voltou aos Olivaes. Achou Craft dormindo, e subiu ao quarto do Ega. As janellas tinham ficado abertas, um largo raio de sol dourava o leito; e elle ressonava ainda, no meio d'aquella aureola, deitado de lado, com os joelhos contra o
estomago, o nariz dentro dos lençoes.
Quando Carlos o sacudio, o pobre John abriu um olho triste, e bruscamente ergueu-se sobre o cotovello, espantado para o quarto, para os cortinados de damasco verde, para um retrato de dama empoada que lhe sorria de dentro da sua moldura dourada. De certo as
memorias da vespera o assaltaram, porque se enterrou para baixo, com os lençoes até ao queixo; e a sua face esverdeada, envelhecida, exprimiu a desconsolação de deixar aquelles fofos colxões, a paz confortavel da quinta - para ir affrontar a Lisboa toda a sorte de
cousas amargas.
- Está frio lá fóra? perguntou elle melancholicamente.
- Não, está um dia adoravel. Mas levanta-te, depressa! Se lá fôr alguem da parte do Cohen, podem imaginar que fugiste...
Ega deu immediatamente um pulo da cama, e atordoado, esguedelhado, procurava a roupa, com as canellas nuas, tropeçando contra os moveis. Só achou o gibão de Satanaz. Chamaram o criado, que trouxe umas calças de Craft. Ega enfiou-as á pressa: e sem se
lavar, com a barba por fazer, a gola do paletot erguida, enterrou emfim na cabeça o bonet escossez, voltou-se para Carlos, disse com um ar tragico:
- Vamos a isso!
Craft, que se erguera, foi acompanhal-os ao portão, onde esperava o coupé de Carlos. Na alameda de acacias, tão tenebrosa na vespera sob a chuva, cantavam agora os passaros. A quinta, fresca e lavada, verdejava ao sol. O grande Terra-nova do Craft pulava em roda d'elles.
- Doe-te a cabeça, Ega? perguntou Craft.
- Não, respondeu o outro, acabando de abotoar o paletot. Eu hontem não estava bebado... O que estava era fraco.
Mas, ao entrar para o coupé, fez, com um ar profundo e philosophico, esta reflexão:
- O que é a gente beber bons vinhos... Estou como se não fosse nada!
Craft recommendou que, se houvesse novidade, lhe mandassem um telegramma; fechou a portinhola, o coupé partiu.
Durante a manhã não veiu telegramma á quinta; e quando Craft appareceu na Villa Balzac, onde uma carruagem de Carlos esperava á porta, já escurecera, duas vélas ardiam na triste sala verde. Carlos, estirado no sophá, dormitava, com um livro aberto sobre o
estomago: e Ega passeiava d'um lado para outro, todo vestido de preto, pallido, com uma rosa na botoeira. Tinham estado alli na sala, n'aquella sécca, esperando todo o dia as testemunhas do Cohen.
- Que te dizia eu? Não ha nada, nem podia haver, murmurou Craft.
Mas Ega, agora agitado de idéas negras, temia que elle tivesse assassinado a mulher! O sorriso sceptico de Craft indignou-o. Quem
conhecia melhor o Cohen do que elle? Sob a apparencia burgueza, era um monstro! Tinha-lhe visto matar um gato, só por capricho de
derramar sangue...
- Tenho um presentimento de desgraça, balbuciou elle aterrado.
E logo n'esse momento a campainha retiniu. Ega acordou precipitadamente Carlos, empurrou os dois amigos para o quarto de cama. Craft ainda lhe disse que, áquella hora, não podiam ser os amigos do Cohen. Mas elle queria estar só na sala: e lá ficou, mais
pallido, rigido, muito abotoado na sobrecasaca, com os olhos cravados na porta.
- Que massada! dizia Carlos dentro, tenteando a escuridão do quarto.
Craft accendeu no toucador um resto de vella. Uma luz triste espalhou-se, tudo appareceu n'um desarranjo: no meio do chão estava cahida uma camisa de dormir; a um canto ficara a bacia de banho com agoa de sabão; e, no centro, o enorme leito, envolto nas suas cortinas de seda vermelha, conservava uma magestade de tabernaculo.
Um momento estiveram callados. Craft methodico, e como quem se instrue, examinava o toucador, onde havia um maço de ganchos de cabello, uma liga com o fecho quebrado, um ramo de violetas murchas. Depois foi olhar o marmore da commoda; ahi ficara um prato com ossos de frango, e ao lado uma meia folha de papel escripta a lapis, toda emendada, de certo trabalho litterario do Ega. Elle achava tudo isto muito curioso.
Da sala, no entanto, vinha um ciciar de vozes subtil e intimo. Carlos escutando, julgou sentir uma falla abafada de mulher... Impaciente, foi á cozinha. A criada estava sentada á meza, com a mão mettida pelos cabellos, sem fazer nada, a olhar para a luz: o pagem, espaparrado n'uma cadeira, chupava o seu cigarro.
- Quem foi que entrou? perguntou Carlos.
- Foi a criada do sr. Cohen, disse o garoto, escondendo o cigarro atraz das costas.
Carlos voltou ao quarto, annunciando:
- É a confidente. As cousas terminam amavelmente.
- E como queria você que terminassem? disse Craft. O Cohen tem o seu Banco, os seus negocios, as suas letras a vencer, o seu credito, a sua respeitabilidade, todo um arranjo de cousas a que não convém um escandalo... É isto que calma os maridos. Além d'isso,
já se satisfez, já lhe offereceu pontapes...
N'esse instante houve um rumor na sala, Ega abriu violentamente a porta.
- Não ha nada, exclamou elle, deu-lhe uma coça, e vão ámanhã para Inglaterra!
Carlos olhou para o Craft - que movia a cabeça, como vendo todas as suas previsões realisadas, e approvando plenamente.
- Uma coça, dizia o Ega, com os olhos chammejantes e n'uma voz que sibillava. E depois fizeram as pazes... Vem ainda a ser um menage modelo! A
bengala purifica tudo... Que canalha!
Estava furioso. N'esse momento odiava Rachel - não perdoando ao seu idolo ter-se deixado desfazer á paulada. Lembrava-se justamente da bengala do Cohen, um junco da India, com uma cabeça de galgo por castão. E aquillo zurzira as carnes que elle tinha apertado com paixão! Aquillo pozera vergões roxos onde os seus labios tinham avivado signaes côr de rosa! E tinham feito as pazes. E assim terminava, relles e chinfrim, o romance melhor da sua vida! Preferiria sabel-a morta, a sabel-a espancada. Mas não! levava a sova, deitava-se depois com o marido, e elle mesmo, decerto arrependido, chamando-lhe nomes doces, a ajudava, em ceroulas, a fazer as applicações de arnica! Aquillo acabava em arnica!
- Entre vocemecê para aqui, sr.ª Adelia, gritou elle para a sala, entre para aqui! Aqui só ha amigos. O segredo acabou, o pudor acabou! Isto são amigos! Somos tres, mas somos um! Tem vocemecê diante de si o grande mysterio da Santissima Trindade. Sente-se, sr.ª Adelia, sente-se... Não faça ceremonia... E póde contar.... Aqui a sr.ª Adelia, meninos, viu tudo, viu a coça!
A sr.ª Adelia, uma moça gordinha e baixa, de bonitos olhos, com um chapéo de flôres vermelhas, veiu logo da sala rectificando. Não, ella não vira... Então o sr. Ega não tinha percebido bem... Ella só ouvira.
- Aqui está como foi, meus senhores... Eu tinha ficado a pé, naturalmente, até ao fim do baile, que estava que nem me tinha nas
pernas. Era já dia claro, quando o senhor, ainda vestido de moiro, se fechou no quarto com a senhora. Eu fiquei na cozinha com o
Domingos á espera que elles tocassem a campainha. De repente ouvimos gritos!... Eu fiquei estarrecida, pensei até que eram ladrões.
Corremos, eu e o Domingos, mas a porta do quarto estava fechada, e os dois estavam por dentro, lá para o fundo da alcova. Eu ainda
puz o olho á fechadura, mas não pude vêr nada... Lá o estalar de bofetadas, e trambulhões, e sons de bengalada, isso sim, isso ouvia-se
perfeitamente; e os gritos. Eu disse logo ao Domingos «ai que é uma questão, ai que lá se foi tudo.» Mas de repente, silencio geral! Nós voltámos para a cozinba; d'ahi a pouco o sr. Cohen appareceu, todo esguedelhado, em mangas de camisa, a dizer que nos podiamos
deitar, que elles não precisavam nada, e que ámanhã fallariamos!... Depois lá ficaram toda a noite, e pela manhã parece que estavam muito amiguinhos... Que eu não puz os olhos na senhora. O sr. Cohen, apenas se levantou, veiu á cozinha, fez-me elle as contas, e pôz-me fóra; muito mal creado, até me ameaçou com a policia... Foi pelo Domingos, que eu soube agora, quando fui buscar o bahú com um gallego, que o sr. Cohen ía com a senhora para Inglaterra. Emfim, um chinfrim... Eu até tenho estado todo o dia com o estomago embrulhado.
A sr.ª Adelia com um suspiro, pondo os olhos no chão, calou-se. Ega, com os braços cruzados, olhava amargamente para os seus amigos. Que lhes parecia aquillo? Uma coça!... Se um covarde d'aquelles não merecia uma bala no coração! Mas ella tambem, deixar-se tocar, não ter fugido, consentir ainda depois em dormir com elle!... Tudo uma corja!
- E a sr.ª Adelia, perguntava Craft, não tem idéa de como elle descobriu?...
- Isso é que é prodigioso! gritou Ega, apertando as mãos na cabeça.
Sim, prodigioso! Não fôra carta apanhada: elles não se escreviam. Não podia ter surprehendido as visitas á Villa Balzac: as cousas estavam combinadas com uma arte muito subtil, perfeitamente impenetraveis. Para vir ali, nunca ella commettera a indiscripção de se
servir da sua carruagem. Nunca ella claramente entrara pela porta. Os criados d'elle nunca a tinham visto, não sabiam quem era a senhora que o visitava... Tantos cuidados, e tudo estragado!
- Estranho, estranho! murmurava Craft.
Houve um silencio. A sr.ª Adelia terminara por descançar familiarmente n'uma cadeira, com a sua trouxasinha no regaço.
- Pois olhe, sr. Ega, disse ella, depois de reflectir, creia então uma cousa, é que foi em sonhos. Já tem acontecido... Foi a senhora que sonhou alto com v. ex.ª, disse tudo, o sr. Cohen ouviu, ficou de pedra no sapato, espreitou-a, e descobriu a marosca... E eu sei que
ella sonha alto.
Ega, diante da sr.ª Adelia, percorria-a desde as flôres do chapéo até á roda das saias, com os olhos faiscantes.
- Como é possivel que elle ouvisse? Se elles tinham quartos separados!... Eu sei que tinham.
A sr.ª Adelia baixou as palpebras, acariciou com os dedos calçados de luvas pretas a sua trouxasinha redonda, e disse mais baixo estas palavras:
- Não tinham, não senhor. Nem a senhora consentia em tal arranjo... A senhora gosta muito do marido, e tem muitos ciumes d'elle.
Houve um silencio embaraçado e desagradavel. Sobre o toucador o resto da vella acabava, com uma luz lugubre. E Ega, que affectara sorrir, encolher os hombros, dava pelo quarto passos lentos e murchos, triturando o bigode com a mão tremula.
Então Carlos enojado, cançado d'aquelle episodio que durava desde a vespera, e onde constantemente se remexera em lodo, declarou que era necessario findar! Eram oito horas, e elle queria jantar...
- Sim, vamos todos jantar, murmurou o Ega, com o ar confuso e embaçado.
De repente fez um signal á sr.ª Adelia, arrastou-a para a sala, fechou-se lá outra vez.
- Você não está farto d'isto, Craft? exclamou Carlos, desesperado.
- Não. Acho um estudo curioso.
Esperaram ainda dez minutos. Subitamente a vella extinguiu-se. Carlos, furioso, gritou pelo pagem. E o garoto entrava com um immundo candieiro de petroleo - quando Ega, mais composto, voltou da sala. Tudo acabara, a sr.ª Adelia partira.
- Vamos lá jantar, disse elle. Mas aonde, a esta hora?
E elle mesmo lembrou o André, ao Chiado. Em baixo, alem do coupé de Carlos, esperava a tipoia do Craft. As duas carruagens partiram. A Villa Balzac ficava apagada, muda, d'ora em diante inutil.
No André tiveram de esperar muito tempo, n'um gabinete triste, com um papel de estrellinhas douradas, cortininhas de cassa barata sob sanefas de reps azul, e dois bicos de gaz que silvavam. Ega, enterrado no sophá de mollas gastas e lassas, cerrara os olhos, parecia exhausto. Carlos ía contemplando as gravuras pela parede, todas relativas a hespanholas: uma saíndo da egreja; outra saltando uma pocinha de agua; outra, de olhos baixos, escutando os conselhos de um canonico. Craft, já á meza, com a cabeça entre os punhos, percorria um Diario da Manhã, que o criado offerecera para os senhores se entreterem.
De repente o Ega deu um murro no sophá, que rangeu lamentavelmente.
- Eu o que não percebo, gritou elle, é como aquelle malvado descobriu!...
- A hypothese da sr.ª Adelia, disse Craft erguendo os olhos do jornal, parece provavel. Ou em sonhos, ou acordada, a pobre senhora descahiu-se. Ou talvez uma denuncia anonyma. Ou talvez apenas um acaso... O facto é que o homem desconfiou, espreitou-a, e apanhou-a.
Ega erguera-se:
- Eu não vos quiz dizer diante da Adelia, que não estava no segredo todo. Mas vocês sabem a casa defronte da minha, do outro lado da viella, uma casa com um grande quintal? Ahi mora uma tia do Gouvarinho, a D. Maria Lima, uma pessoa respeitavel. A Rachel
ía vêl-a de vez em quando. São intimas, a D. Maria Lima é intima de todo o mundo. Depois sahia por uma portinha do quintal, atravessava a viella, e estava á porta da minha casa, á porta escusa, á porta da escada que vae ter ao cacifro de banho. Já vocês vêem... Os criados nem a avistavam. Quando ella lá lunchava, o lunch estava já posto no meu quarto, as portas fechadas. Mesmo se alguem visse, era uma senhora com um véo preto, que vinha de casa da Lima... Como podia o homem apanhal-a?... Além d'isso, em casa da Lima, ella mudava de chapéo, e punha um waterproof...
Craft cumprimentou.
- É brilhante! Parece de Scribe.
- Então, disse Carlos sorrindo, essa respeitavel fidalga...
- A D. Maria, coitada... Eu te digo, é uma excellente velha, recebida em toda a parte, mas pobre, e faz d'estes favores... Ás vezes mesmo em casa d'ella.
- Leva caro por esses serviços? perguntou tranquillamente Craft, que em todo aquelle caso procurava instruir-se.
- Não, coitada, disse o Ega. Dão-se-lhe de vez em quando cinco libras.
O criado entrava com uma travessa de camarões, os tres em silencio accommodaram-se á meza.
Depois do jantar recolheram ao Ramalhete. Ega ía lá dormir, receiando, com os nervos tão excitados, a solidão da villa Balzac. Partiram, de charutos accesos, n'uma caleche descoberta, sob a noite estrellada e doce.
Felizmente não estava ninguem no Ramalhete; Ega, cançado, poude retirar-se logo para o seu quarto, um aposento d'hospedes no segundo andar, onde havia um bello leito antigo de pau preto. Ahi, apenas o criado o deixou, Ega approximou-se do tremó onde ardiam
as luzes, e tirou do pescoço, de sob a camiza, um medalhão de ouro. Tinha dentro uma photographia de Rachel: - e a sua intenção agora era queimal-a, deitar ao balde das agoas sujas as cinzas d'aquella paixão. Mas, ao abrir o medalhão, a face bonita, banhada n'um
sorriso, sob o vidro oval, pareceu olhar para elle com uma tristeza no velludo das pupillas languidas... A photographia mostrava apenas a cabeça, com uma abertura de decote no começo do vestido: e as recordações de Ega alargaram aquelle decote uma vez mais,
revendo o collo, o extraordinario setim da pelle, o signalsinho sobre o seio esquerdo... O sabor dos seus beijos passou-lhe de novo nos labios, sentiu n'alma outra vez como o ecco dos suspiros cançados que ella soltara nos seus braços. E ella ia-se embora, nunca mais a
veria! Esta desolada amargura do nunca mais revolveu-o todo - e com a face enterrada no travesseiro, o pobre demagogo, o grande phraseador soluçou muito tempo no segredo da noite.
Toda essa semana foi dolorosa para o Ega. Logo ao outro dia Damaso apparecera no Ramalhete, e por elle ouviram os rumores de Lisboa. Já se sabia no Gremio, no Chiado, por toda a parte, que elle fôra expulso da casa dos Cohens. O urso, a pastora do Tyrol, testemunhas do episodio, tinham-n'o badallado com enthusiasmo. Dizia-se mesmo que o Cohen lhe dera um pontapé. Os amigos da casa, esses, sobretudo o Alencar, prégavam com fervor a innocencia da sr.ª D. Rachel. O Alencar contava publicamente que o Ega, provinciano inexperiente e leão de Celorico, tendo tomado por evidencias de paixão os sorrisos de amabilidade de uma senhora que recebe, - escrevera á sr.ª D. Rachel uma carta quasi obscena, que ella, coitadinha, toda em lagrimas, viera mostrar ao marido.
- Então dão-me para baixo, hein, Damaso? murmurou Ega que, no gabinete de Carlos, embrulhado n'uma velha ulster, e encolhido n'uma poltrona, escutava estas cousas com um ar cançado e doente.
Damaso confessou que na sociedade lhe davam para baixo.
Ah, elle sabia-o bem! Tinha antipathias em Lisboa. Ninguem lhe perdoara ainda a pelissa. A sua verve, toda em sarcasmos, offendia. E era desagradavel para muita gente que um homem, com esse espirito tão perigoso de ferro em braza, tivesse uma mãe rica, e
fosse independente.
Depois, no sabbado seguinte, Carlos, ao voltar do jantar dos Gouvarinhos - que fôra excellente - contou-lhe a conversa que tivera com a sr.ª condessa. A condessa fallara-lhe muito livremente, como um homem, d'aquelle desastre do Ega. Tinha-se affligido muito, não só pela Rachel, coitada, de quem era amiga, mas pelo Ega, que ella apreciava tanto, tão interessante, tão brilhante, e que sahia de tudo aquillo enxovalhado! O Cohen dizia a todos (dissera-o ao Gouvarinho) que ameaçára o Ega de pontapés, por elle ter escripto a sua
mulher uma carta immunda. Os que não sabiam nada, como o Gouvarinho, acreditavam, apertavam as mãos na cabeça; e os que sabiam, os que havia seis mezes sorriam da intimidade do Ega com os Cohens, affectavam tambem acreditar, cerravam os punhos de
indignação. O Ega era odiado. E a pequena Lisboa, que vive entre o Gremio e a casa Havaneza, folgava em «enterrar» o Ega.
Ega, com effeito, sentia-se «enterrado». E n'essa noite declarou a Carlos que decidira recolher-se á quinta da mãe, passar lá um anno a acabar as Memorias d'um Atomo, e reapparecer em Lisboa com o seu livro publicado, triumphando sobre a cidade, esmagando
os mediocres. Carlos não perturbou esta radiante illusão.
Mas quando Ega, antes de partir, foi a recapitular os seus negocios de casa, de dinheiro, encontrou-se diante de cousas abominaveis. Devia a todo o mundo, desde o estofador até ao padeiro; tinha tres letras a vencer; aquellas dividas, se as deixasse, soltas e ladrando, juntar-se-iam, na tagarallice publica, ao caso dos Cohens - e elle seria, além do amante ameaçado de pontapés, o pelintra perseguido pelos credores! Que havia de fazer, senão valer-se de Carlos? Carlos, para regular tudo, emprestou-lhe dois contos de réis.
Depois, tendo despedido os criados da Villa Balzac, surgiram-lhe outras complicações. A mãe do pagem veiu d'ahi a dias ao Ramalhete, muito insolente, gritando que o filho lhe desapparecera! E era exacto: o famoso pagem, pervertido pela cozinheira, sumira-se
com ella para as viellas da Mouraria, a começar ahi uma divertida carreira de faia.
Ega recusou-se a attender ás reclamações da matrona. Que diabo tinha elle com essas torpezas?
Então o amante da creatura interveiu, ameaçadoramente. Era um policia, um esteio da ordem: e deu a entender que lhe seria facil provar como na Villa Balzac se passavam «cousas contra a natureza», e que o pagem não era só para servir á meza... Nauseado até á
morte, Ega pacteou com a intrugice, largou cinco libras ao policia. Quando n'essa noite, uma noite triste d'agoa, Carlos e Craft o acompanharam a Santa Apolonia, elle disse-lhes na carruagem estas palavras, triste resumo d'um amor romantico:
- Sinto-me como se a alma me tivesse cahido a uma latrina! Preciso um banho por dentro!

Affonso da Maia ao saber este desastre do Ega, tinha dito a Carlos, com tristeza:
- Má estreia, filho, pessima estreia!
E n'essa noite, depois de voltar de Santa Apolonia, Carlos pensava n'estas palavras, dizia tambem comsigo: - Pessima estreia!... E nem só a estreia do Ega era pessima; tambem a sua. E talvez, por pensar n'isso, as palavras do avô tinham tido aquella tristeza. Pessimas estreias! Havia seis mezes que o Ega chegara de Celorico, embrulhado na sua grande pellissa, preparado a deslumbrar Lisboa com as Memorias d'um Atomo, a dominal-a com a influencia de uma Revista, a ser uma luz, uma força, mil outras cousas... E agora, cheio de dividas e cheio de ridiculo, lá voltava para Celorico, escorraçado. Pessima estreia! Elle, por seu lado, desembarcara em Lisboa, com idéas collossaes de trabalho, armado como um luctador: era o consultorio, o laboratorio, um livro iniciador, mil cousas fortes... E, que tinha feito? Dois artigos de jornal, uma duzia de receitas, e esse melancolico capitulo da Medicina entre os Gregos. Pessima estreia!
Não, a vida não lhe parecia promettedora, n'esse instante, passeiando na sala de bilhar com as mãos nos bolsos, emquanto ao lado os amigos conversavam, e fóra uivava o sudoeste. Pobre Ega, que infeliz elle iria, encolhido ao canto do seu wagon!... Mas os outros, ali, não estavam mais alegres. Craft e o Marquez tinham começado uma conversa sobre a vida, soturna e desconsoladora. De que servia viver, dizia Craft, não se sendo um Livingstone ou um Bismark? E o Marquez, com um ar philosophico, achava que o mundo se ia tornando estupido. Depois chegou o Taveira com a historia horrivel d'um collega d'elle, cujo filho cahira pela escada, se despedaçara, no momento em que a mulher estava a morrer d'uma pleurisia. Cruges resmungou o quer que fosse sobre suicidio. As palavras
arrastavam-se, melancolicas. Instinctivamente, Carlos, de vez em quando, ia despertar as lampadas.
Mas tudo lhe pareceu resplandecer, quando d'ahi a instantes Damaso chegou, e lhe disse que o Castro Gomes estava incommodado, e de cama.
- Naturalmente, accrescentou o Damaso, mandam-te chamar, por teres já visto a pequena...
Carlos ao outro dia não sahiu de casa, esperando um recado, faiscando d'impaciencia. Nenhum recado veiu. E, duas tardes depois, ao descer para o Aterro - o primeiro encontro que teve, ás Janellas Verdes, foi o Castro Gomes, de caleche descoberta, com a mulher
ao lado, e a cadellinha no collo.
Ella passou, sem o vêr. E logo ali Carlos decidiu findar aquella tortura, pedir muito simplesmente ao Damaso que o apresentasse ao Castro Gomes, antes d'elle partir para o Brazil... Não podia mais, precisava ouvir a voz d'ella, vêr o que os seus olhos diziam quando eram interrogados de perto.
Mas toda essa semana achou-se, constantemente, sem saber como, na companhia dos Gouvarinhos. Começou por encontrar o conde, que lhe travou do braço, arrastou-o á rua de S. Marçal, installou-o n'uma poltrona, no seu escriptorio, e leu-lhe um artigo que destinava ao Jornal do Commercio sobre a situação dos partidos em Portugal: depois convidou-o a jantar. Na tarde seguinte elles tinham uma partida de croquet. Carlos foi. E, a uma janella, aberta sobre o jardim, teve um momento de intimidade com a condessa, contou-lhe, rindo, como os cabellos d'ella o tinham encantado, a primeira vez que a vira. N'essa noite, ella fallou d'um livro de Tennyson, que não lera; Carlos offereceu-lh'o, foi-lh'o levar ao outro dia, de manhã. Encontrou-a só, toda vestida de branco: e riam, baixavam já a voz, as duas cadeias estavam mais juntas - quando o escudeiro annunciou a sr.ª D. Maria da Cunha. Era uma cousa tão extraordinaria, a D. Maria da Cunha áquella hora! Carlos, de resto, gostava muito da D. Maria da Cunha, uma velha engraçada, toda bondade, cheia de sympathia por todos os peccados - e ella mesma muito peccadora quando era a linda Cunha. D. Maria era muito falladora, parecia ter que dizer em particular á condessa; e Carlos deixou-as, promettendo voltar uma d'essas tardes tomar chá, e fallar de Tennyson.
Na tarde em que elle se vestia para lá ir, Damaso appareceu-lhe no quarto, a dar-lhe uma novidade que o enchia de desgosto e de
«ferro». O telhudo do Castro Gomes mudára de idéa, já não ia ao Brazil! Ficava ali, no Central, até ao meiado do verão! De sorte que estava tudo estragado...
Carlos pensou logo em fallar da sua apresentação ao Castro Gomes. Mas, como em Cintra, sem saber porquê, veiu-lhe uma repugnancia de a conhecer por meio do Damaso. E foi-se vestindo em silencio.
Damaso no entanto maldizia a sua chance:
- E eu que tinha mulher, eu que a tinha, se houvesse occasião. Mas que diabo queres tu, assim?...
Queixou-se então do Castro Gomes. Em resumo, era um telhudo. E a vida d'aquelle homem era mysteriosa... Que diabo estava elle a fazer em Lisboa? Ali havia difficuldades de dinheiro... E elles não se davam bem. Na vespera houvera de certo questão. Quando elle
entrara, ella estava com os olhos vermelhos, e enfiada; e elle, nervoso, a passeiar pela sala, a retorcer a barba... Ambos contrafeitos, uma palavra cada quarto d'hora...
- Sabes tu? exclamou elle. Tenho minha vontade de os mandar á fava.
Queixou-se tambem d'ella. Era sobretudo muito desegual. Ora bom modo, ora regelada; e, ás vezes, elle dizia qualquer cousa muito natural, d'estas cousas de conversa de sociedade, e ella punha-se a rir. Era de encavacar, hein? Emfim, gente muito exquisita.
- Onde vaes tu? disse elle, com um suspiro de aborrecimento, vendo Carlos pôr o chapeu.
Ia tomar chá com a Gouvarinho.
- Pois olha, vou comtigo... Estou d'uma secca! Carlos hesitou um instante, terminou por dizer:
- Vem, fazes-me até favor...
A tarde estava lindissima, Carlos ia no dog-cart.
- Ha que tempos que não damos assim um passeio juntos, disse Damaso.
- Tu andas lá mettido com estrangeiros!...
Damaso deu outro suspiro, e não tornou a dizer mais nada. Depois, á porta dos Gouvarinhos, quando soube que a sr.ª condessa recebia, resolveu subitamente não entrar. Não, não entrava. Estava muito estupido, incapaz de achar uma palavra...
- Ah, e outra cousa que me lembrou agora, exclamou elle, demorando ainda Carlos diante do portão. O Castro Gomes, hontem, perguntou-me o que te havia de mandar pela visita á pequena... Eu disse que tu tinhas ido lá por favor, como meu amigo. E elle disse
que te havia de vir deixar um bilhete... Naturalmente vens a conhecel-os.
Não era, pois, necessario que Damaso o apresentasse!
- Apparece á noite, Damasosinho, vai lá jantar ámanhã! exclamou Carlos, subitamente radiante, dando um ardente aperto de mão ao seu amigo.
Quando entrou na sala, um escudeiro acabava de servir chá. A sala, forrada d'um papel severo, verde e ouro, com retratos de familia em caixilhos pesados, abria por duas varandas sobre a folhagem do jardim. Em cima das mezas havia cestos de flôres. No sophá, duas senhoras de chapeu, ambas de preto, conversavam, com a chavena na mão. A condessa, ao estender os dedos a Carlos, ficara tão côr de rosa - como a seda acolchoada da cadeira em que estava recostada, ao pé d'um velador de pau santo. Notou logo, sorrindo, o ar radiante de Carlos. Que lhe tinha acontecido de bom? Carlos sorriu tambem, disse que não era possivel entrar ali com outro ar. Depois perguntou pelo conde...
O conde ainda não apparecera, detido de certo na camara dos pares, onde se discutia o projecto sobre a Reforma da Instrucção Publica.
Uma das senhoras de preto fazia votos para que se alliviassem os estudos. As pobres creanças succumbiam verdadeiramente á quantidade exaggerada de materias, de cousas a decorar: o d'ella, o Joãosinho, andava tão pallido e tão desfigurado, que ella ás vezes tinha vontade de o deixar ficar ignorante de todo. A outra senhora pousou a chavena sobre um console ao lado, e passando sobre os labios a renda do lenço, queixou-se sobretudo dos examinadores. Era um escandalo as exigencias, as difficuldades que punham, só para poder deitar RR... Ao pequeno d'ella tinham feito as perguntas mais estupidas, as mais reles; assim, por exemplo, o que era o sabão, porque lavava o sabão?...
A outra senhora e a condessa apertaram as mãos contra o peito, consternadas. E Carlos, muito amavel, concordou que era uma abominação. O marido d'ella - continuava a dama de preto - ficara tão desesperado que, encontrando o examinador no Chiado, o ameaçou de lhe dar bengaladas. Uma imprudencia, de certo; mas, emfim, o homem fôra malvado!... Não havia verdadeiramente senão uma cousa digna de se estudar, eram as linguas. Parecia insensato que se torturasse uma creança com botanica, astronomia, physica... Para que? Cousas inuteis na sociedade. Assim, o pequeno d'ella, agora, tinha lições de chimica... Que absurdo! Era o que o pae dizia - para que, se elle o não queria para boticario?
Depois d'um silencio, as duas senhoras ergueram-se ao mesmo tempo; e houve um murmurio de beijos, um frou-frou de sedas.
Carlos ficou só com a sr.ª condessa, que reoccupara a sua cadeira côr de rosa.
Immediatamente ella perguntou pelo Ega.
- Coitado, lá está para Celorico.
Ella protestou, com um lindo riso, contra aquella phrase tão feia «lá está para Celorico» Não, não queria... Coitado do Ega! Merecia uma melhor oração funebre. Celorico era horrivel para um fim de romance...
- De certo, exclamou Carlos, rindo tambem, era mais bello dizer-se: lá está para Jerusalem!
N'esse momento o criado annunciou um nome, e appareceu o amigo Telles da Gama, um intimo da casa. Quando soube que o conde devia estar ainda batalhando sobre a Reforma da Instrucção, levou as mãos á cabeça como lamentando um tão feio desperdicio
de tempo, e não se quiz demorar. Não, nem mesmo o excellente chá da sr.ª condessa o tentava. A verdade era que estava tão abandonado da graça de Deus, perdera de tal modo o sentimento das cousas bellas, que entrara, não para vêr a sr.ª condessa – mas simplesmente fallar ao conde. Então ella teve um bonito ar de princeza offendida, perguntou a Carlos se uma tão rude sinceridade de montanhez não fazia saudades das maneiras polidas do antigo regimen. E Telles da Gama, gingando de leve, declarava-se democrata, homem da natureza, com um riso que lhe mostrava dentes magnificos. Depois, ao sair, dando um shake-hands ao amigo Maia, quis saber quando o principe de Sta. Olavia lhe dava emfim a honra de vir jantar com elle. A sr.ª condessa indignou-se. Não, era realmente de mais! Fazer convites, na sua sala, diante d'ella, - um homem que fallava tanto da sua cozinheira allemã, e nem sequer lhe offerecera jámais um prato de chou-crôute!
Telles da Gama, rindo sempre e gingando, jurou que andava a arranjar a sua sala de jantar para dar á sr.ª condessa uma festa, que havia de ficar nos annaes do reino! Agora com o Maia era differente: jantavam ambos na cozinha, com os pratos sobre os joelhos. E abalou, gingando sempre, rindo ainda da porta, mostrando os dentes magnificos.
- Muito alegre, este Gama, não é verdade? disse a condessa.
- Muito alegre, disse Carlos.
Então a condessa olhou o relogio. Eram cinco e meia, áquella hora ella já não recebia: podiam, emfim, conversar um momento, em boa camaradagem. E, o que houve, foi um silencio lento, em que os olhos de ambos se encontraram. Depois Carlos perguntou por
Charlie, o seu lindo doente. Não estava bem, com uma ligeira tosse apanhada no passeio da Estrella. Ah, aquella creança nunca deixava de lhe dar o cuidado! Ficou callada, com o olhar esquecido no tapete, movendo languidamente o leque: tinha n'essa tarde uma toilette
exaggerada, d'um tom de folha de outono amarellada, d'uma seda grossa, que ao menor movimento fazia um ruge-ruge de folhas seccas.
- Que lindo tempo tem feito! exclamou ella de repente, como acordando.
- Lindo! disse Carlos. Eu estive ha dias em Cintra, e não imagina... Era d'uma belleza de idyllio.
E immediatamente arrependeu-se, quiz-se mal por ter fallado da sua ida a Cintra, n'aquella sala.
Mas a condessa mal o escutára. Tinha-se erguido, fallando de algumas canções que essa manhã recebera de Inglaterra, as novidades frescas da season. Depois, sentou-se ao piano, correu os dedos no teclado, perguntou a Carlos se conhecia aquella melodia - The pale star. Não, Carlos não conhecia. Mas todas essas canções inglezas se parecem, sempre do mesmo tom dolente, romanesco, e muito miss. E trata-se sempre d'um parque melancolico, um regato lento, um beijo sob os castanheiros...
Então a condessa leu alto a letra da Pale star. E era a mesma cousa, uma estrellinha de amor palpitando no crepusculo, um lago pallido, um timido beijo sob as arvores...
- É sempre o mesmo, disse Carlos, e é sempre delicioso.
Mas a condessa atirou o papel para o lado, achando aquillo estupido. Começou a remexer entre os papeis de musica, nervosa, e com um olhar que escurecia. Para quebrar o silencio, Carlos gabou-lhe as suas lindas flores.
- Ah, vou-lhe dar uma rosa! exclamou ella logo, deixando as musicas.
Mas, a flôr que ella lhe queria dar estava no boudoir, ao lado. Carlos seguiu a sua grande cauda, onde corria um reflexo dourado de folhagem de outono batida do sol. Era um gabinete forrado de azul, com um bonito tremó do seculo XVIII, e sobre um forte pedestal
de carvalho, o busto em barro do conde, na sua expressão de orador, a fronte erguida, a gravata desmanchada, o labio fremente...
A condessa escolheu um botão com duas folhas, e ella mesmo lhe veiu florir a sobrecasaca. Carlos sentia o seu aroma de verbena, o calor que subia do seu seio arfando com força. E ella não acabava de prender a flôr, com os dedos tremulos, lentos, que pareciam collar-se, deixar-se adormecer sobre o panno...
- Voila! murmurou emfim, muito baixo. Ahi está o meu bello cavalleiro da Rosa Vermelha... E agora, não me agradeça!
Insensivelmente, irresistivelmente, Carlos achou-se com os labios nos labios d'ella. A seda do vestido roçava-lhe, com um fino ruge-ruge entre os braços; - e ella pendia para traz a cabeça, branca como uma cera, com as palpebras docemente cerradas. Elle deu um passo, tendo-a assim enlaçada, e como morta; o seu joelho encontrou um sophá baixo, que rolou e fugiu. Com a cauda de seda enrolada nos pés, Carlos seguiu, tropeçando, o largo sophá, que rolou, fugiu ainda, até que esbarrou contra o pedestal onde o sr. Conde erguia a fronte inspirada. E um longo suspiro morreu, n'um rumor de saias amarrotadas.
D'ahi a um momento estavam ambos de pé: Carlos, junto do busto, coçando a barba, com o ar embaraçado, e já vagamente arrependido: ella, diante do tremó Luiz XV, compondo, com os dedos tremulos, o frisado do cabello. De repente, na antecamara, ouviu-se a voz do conde. Ella, bruscamente, voltou-se, correu a Carlos, e, com os longos dedos cobertos de pedrarias, agarrou-lhe o rosto, atirou-lhe dois beijos faiscantes ao cabello e aos olhos. Depois, sentou-se largamente no sophá - e estava fallando de Cintra, rindo alto, quando o conde entrou, seguido de um velho calvo, que se vinha a assoar a um enorme lenço de seda da India.
Ao vêr Carlos no boudoir, o conde teve uma bella surpreza, esteve-lhe apertando as mãos muito tempo, com calor, assegurando-lhe que ainda n'essa manhã, na camara, se lembrara d'elle...
- Então, por que vieram tão tarde? exclamou a condessa, que se apoderara logo do velho, rindo, mexendo-se, animada, amavel.
- O nosso conde fallou! disse o velho, ainda com o olho brilhante de enthusiasmo.
- Fallaste? exclamou ella, voltando-se com um interesse encantador.
É verdade, fallara; e desprevenido! Quando ouvira porém o Torres Valente (homem de litteratuta, mas um doido, sem senso pratico) quando o ouvira defender a gymnastica obrigatoria nos collegios - erguera-se. Mas não imaginasse o amigo Maia, que elle tinha feito um discurso.
- Ora essa! exclamou o velho, agitando o lenço. E um dos melhores que eu tenho ouvido na camara! Dos de arromba!
O Conde modestamente protestou. Não: tinha simplesmente lançado uma palavra de bom senso, e de bom principio. Perguntara apenas ao seu illustre amigo, o sr. Torres Valente, se na sua idéa, os nossos filhos, os herdeiros das nossas casas, estavam destinados para palhaços!...
- Ah, esta piada, sr.ª condessa! exclamou o velho. Eu só queria que v. ex.ª ouvisse esta piada... E como elle a disse! com um chic!
O conde sorriu, agradeceu para o lado, ao velho. Sim, dissera-lhe aquillo. E, respondendo a outras reflexões do Torres Valente, que não queria nos lyceus, nem nos collegios, um ensino «todo impregnado de cathecismo», elle lançara-lhe uma palavra cruel.
- Terrivel, exclamou o velho n'um tom cavo, preparando o lenço para se assoar outra vez.
- Sim, terrivel... Voltei-me para elle, e disse-lhe isto... «Creia o digno par, que nunca este paiz retomará o seu logar á testa da civilisação, se, nos lyceus, nos collegios, nos estabelecimentos de instrucção, nós outros os legisladores formos, com mão impia, substituir a cruz pelo trapezio...
- Sublime, rosnou o velho, dando um ronco medonho dentro do lenço.
Carlos, erguendo-se, declarou aquillo d'uma ironia adoravel.
E o conde, quando elle se despediu, não se contentou com um simples aperto de mão, passou-lhe o braço pela cinta, chamou-lhe o seu querido Maia. A condessa sorria, com o olhar ainda humido, um resto de pallidez, movendo o leque languidamente, recostada em
duas almofadas do sophá - debaixo do busto do marido que erguia a fronte inspirada.

0 comentários:














 
©2007 '' Por Elke di Barros